Analise

"Não dá para oferecer um voto de confiança assim tão fácil ao Talibã"

Marcelo Torres revê reportagens que fez no Afeganistão

Quando desembarquei em Cabul em 2007, não tinha sequer um motorista me esperando. Entre um amontoado de taxistas acenando com a mão para disputar as corridas, escolhi um rapaz com aparência ocidental. Não sei se inconscientemente associava os barbudos com turbantes aos terroristas que via todos os dias na TV, mas essa escolha me ajudou a entender, desde o princípio, a complexidade do Afeganistão.

O motorista, um rapaz da etnia tajique, tinha ojeriza a tudo o que envolvia o Talibã. Almocei um dia na casa dele e percebi que era um lar conservador para os padrões brasileiros, onde homens e mulheres não se misturavam na hora de comer, principalmente com a presença de um forasteiro. Mas, dentro daquele contexto, os tajiques eram os mais progressistas. As mulheres tinham liberdades impensáveis para suas compatriotas da etnia pachtun, a dos talibãs. E, de repente, em 1996, quando o grupo tomou o poder, todas passaram a conviver com as mesmas restrições: proibição de estudar, obrigação de usar burca e uma vida praticamente invisível na sociedade.

Naquele 2007, os tajiques, como o taxista, celebravam as liberdades que haviam reconquistado. Podiam andar nas ruas de Cabul de cabeça erguida, sem ter que imitar o jeito de ser e se vestir dos pachtuns, que eles consideravam os caipiras do país. Na capital, percebi uma convivência harmoniosa entre as diversas etnias. Também descobri logo que os pachtuns podiam ser tão afáveis quanto os tajiques.

Quando precisei trocar dólares por afeganes, percebi que esse câmbio era feito nas ruas, em mesas a céu aberto, e exclusivamente por homens pachtuns. Um deles pediu licença para trocar dinheiro e me deixou sozinho com sua mesa na calçada e muitos maços de dinheiro em cima. O medo de roubo parecia não existir por ali. "Que lugar tranquilo", cheguei a pensar, antes de seguir para o interior.

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Depois de alguns dias na base militar de Bagram, que tinha na época cerca de 100 mil militares dos países da Otan, e cuja principal avenida havia sido batizada com o singelo nome de "Disney Drive", segui de helicóptero para uma região onde o Talibã havia sido derrotado, mas continuava à espreita. Desembarcamos em uma base menor em uma cidade chamada Ghazni, um centro regional de quase 200 mil habitantes que temia a volta ao poder do grupo que quase o mundo inteiro considerava terrorista.

Dentro da base americana, era tiroteio toda noite, morteiros caindo aqui e ali, e os insurgentes lembrando de todas as formas que ofereciam resistência. Éramos proibidos de acender luzes à noite para evitar que virássemos alvos fáceis. Como não havia banheiro nos quartos, nos virávamos com garrafas PET e, em caso de necessidade maior, caminhávamos no escuro até os banheiros químicos muitas vezes ao som das metralhadoras.

Nas duas semanas que passei em Ghazni, pude conversar com muita gente, de agricultores analfabetos a mulheres que poderiam ser consideradas de vanguarda na sociedade afegã. Em boa parte da população, havia um desejo latente de educar os filhos. Lembro de uma escola com capacidade para 300 alunos, que recebia mais de mil, a maioria do lado de fora do prédio. Ninguém reclamava de receber as lições ao relento.

Mandar as meninas para a escola ainda era algo complicado nos vilarejos por medo da retaliação. De certa forma, ser talibã não era necessariamente fazer parte do grupo que tomou o poder, mas também uma identidade cultural. O próprio governador da província, com quem me encontrei, considerava-se um talibã "do bem" e estava jogando pela cartilha do presidente apoiado pelo Ocidente.

Num cenário assim, era difícil distinguir em quem confiar. Até o vizinho aparentemente pacífico poderia denunciar um comportamento considerado imoral (como ensinar meninas a ler e a escrever).

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Na capital da província, onde a presença do governo era mais forte, respirava-se um ar mais tranquilo. Entrevistei uma professora que, arriscando o próprio pescoço, montou uma escola clandestina na era talibã e evitou que uma geração de meninas do bairro crescesse analfabeta. Depois, virou deputada. Imagino o medo que deve estar sentindo agora que os inimigos voltaram ao poder.

Perante a imprensa mundial, o "novo" Talibã prometeu inclusão, moderação, ausência de vingança. Quem viveu sob a crueldade do regime que abrigou a Al-Qaeda sabe que não dá para oferecer um voto de confiança assim tão fácil.

Sobrevoando a vasta região desértica ao redor de Ghazni, avistei inúmeras fortalezas com mulheres que eu jamais poderia entrevistar. São complexos com meia dúzia de casas, onde a única informação que chega é pelas rádios religiosas ou pelos chefes informais dessas famílias estendidas (geralmente homens velhos).

Já houve tentativas de jogar panfletos de aviões com instruções de campanhas de saúde pública, mas com efeito nulo sobre as mulheres analfabetas. Ali elas veem os anos passar como se permanecessem na Idade Média. Se saber é poder, o não saber as condena a um mundo em que as coisas não mudam de geração em geração.

Quando vi, na semana passada, que Ghazni já tinha caído, pensei em todas essas pessoas, as dos vilarejos, para quem pouco mudaria, e as das cidades maiores, que poderiam ser outra vez condenadas ao estilo de vida que lhes era tão estranho. Não demorou para que o poder central fosse tomado em Cabul. Que o motorista que me guiou pela capital nunca seja punido ao se recusar a usar barba e turbante. Que as mulheres da família dele continuem estudando. E que - o que resta esperar? - o "neo-Talibã" cumpra a promessa de moderação. É um povo que já sofreu demais.

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