Mulher, preta e favelada, Benedita da Silva fez história na Constituinte
Deputada relembra luta na defesa de minorias, desafios e conquistas nos 35 anos da Constituição
Na semana do aniversário de 35 anos da Constituição Federal de 1988, a deputada federal constituinte Benedita da Silva, reflete sobre os caminhos do Brasil nas últimas três décadas.
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Integrante da chamada Bancada do Batom, como ficou conhecido o grupo formado por mulheres constituintes, ela era a única preta do grupo.
A Assembleia Nacional Constituinte foi instalada no Congresso Nacional em 1º de fevereiro de 1987. Reuniu 487 deputados federais, entre eles, 26 mulheres. A parlamentar que àquela altura já conhecia de perto a luta pela sobrevivência, antes de ser eleita vereadora e alçar voos maiores no parlamento federal, foi empregada doméstica e camelô no Rio de Janeiro.
"Inclusive eu tive uma questão muito preconceituosa comigo porque quando eu disse que ia ser deputada federal eu estava vereadora da cidade, aí me aconselharam: lá não é igual aqui. Como quem diz: olha, lá (em Brasília) é outra coisa, você não tem condição de ser uma deputada federal", contou Bené, como é carinhosamente chamada.
Na Câmara Federal, a deputada não só enfrentou olhares e o preconceito público e velado, mas também conseguiu incluir temas sensíveis na Constituição de 88. Em conversa com a equipe do SBT Rio, na plenitude de seus 81 anos de idade e quase cinquenta de vida pública, Benedita falou sobre a trajetória política, a quase ruptura no 8 de janeiro, os desafios para dar efetividade à lei maior do país e os bastidores da Assembleia Nacional Constituinte.
Sem banheiro
Ao desembarcar na Casa das Leis, em Brasília, a moradora ilustre do Morro do Chápeu Mangueira, em Copacabana, no Rio de Janeiro, na época, não demorou para perceber que a estrutura do Congresso Nacional e as leis eram feitas por homens e exclusivamente para eles.
"A primeira coisa que nós (mulheres constituintes) nos deparamos é que não tinha banheiro no plenário para as mulheres. Porque no imaginário deles, ali não era lugar pra mulher, né? Não tinha", lembra Benedita.
Ao lado das deputadas a parlamentar criou o Conselho Nacional da Mulher, que junto de outras organizações femininas atuou na defesa de mulheres faveladas, pretas, quilombolas, mães, trabalhadoras domésticas, rurais. "Nós tivemos também essas mulheres que não tinham direito à terra. Não conseguimos a reforma agrária, mas conseguimos introduzir a titularidade às mulheres, para elas terem a garantia também de que elas poderiam, porque eram só os homens que tinham a titularidade", recorda. "A constituinte foi o encontro do Brasil com ele mesmo. E nesse momento desse encontro cada um levantou a sua bandeira e nós mulheres levantamos as nossas bandeiras", conclui.
Avanços
Entre as metas que saíram do papel estão a licença-maternidade de 120 dias para as mulheres mães, a igualdade de direitos e de salários entre homem e mulher e mecanismos para coibir a violência doméstica -- que anos mais tarde foram fortalecidos com a Lei Maria da Penha.
O direito das domésticas, mesmo sendo regulamentado apenas duas décadas depois, é tido por Benedita como uma de suas principais conquistas. "É muito importante porque a trabalhadora doméstica caracterizava o trabalho escravo e, naquele momento, nós tínhamos que reconhecer esse trabalho. Não foi fácil, mas houve um reconhecimento", relembra emocionada.
Ao resgatar a trajetória de mulheres, que em sua maioria são pretas e vítimas de vulnerabilidade econômica e social, a ex-doméstica não poupa críticas a um estado segregador, mas, segundo ela, a passos lentos essa realidade está mudando.
"As domésticas são mulheres que amamentaram, estiveram ali ninando as crianças brancas brasileiras, principalmente as ricas. E, no entanto, muitos dos seus ainda hoje estão sendo mortos, assassinados, sem oportunidade", desabafa.
Lula, Bolsonaro e o 8 de janeiro
Na longa conversa na tarde quente de uma 6ª feira de primavera, em seu apartamento no Rio, Benedita também falou sobre o momento político enfrentado pelo país nos quatro anos do governo de Jair Bolsonaro.
Citou os atos golpistas de 8 de janeiro de 2023 e falou sobre a governabilidade do presidente Lula. "O Brasil votou e nós respeitamos a decisão. Convivemos os quatro anos, respeitamos, batalhamos, disputamos e fomos constitucionalmente fazer a disputa para mudança".
Benedita avalia que o 8 de janeiro só não foi consumado antes por não ter recebido adesão dos militares. "Só não fizeram mesmo no dia da posse do presidente Lula porque, como nós estamos assistindo com a delação premiada [do ex-assessor de Bolsonaro Mauro Cid], não encontrou um respaldo. Tanto assim que nós toleramos, o Brasil tolerou, barracas e mais barracas em frente aos quartéis, uma coisa incrível. Nós fazíamos caminhadas de passeatas no Rio de Janeiro e tem uma coisa que era proibido em qualquer manifestação pacífica: era você passar fazendo qualquer barulho ali no quartel da presidente Vargas", lembra a parlamentar constituinte, em referência ao Quartel General do Exército, localizado na Avenida Presidente Vargas, no Rio de Janeiro.
Confira a entrevista com Benedita da Silva na íntegra:
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