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Dolarizar e fechar o Banco Central seria uma boa solução para a Argentina?

SBT News conversou com especialista sobre as principais promessas do presidente eleito, Javier Milei

Presidente eleito da Argentina, Javier Milei vem dando indicações de que deve abandonar uma das suas principais promessas eleitorais: a dolarização da economia.

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Medida geralmente adotada por países com inflação descontrolada -- caso da Argentina, onde a inflação está em torno de 120% -- a dolarização tem como objetivo mudar a moeda oficial do país para o dólar, e assim trazer mais estabilidade nos preços, maior confiança nas transações comerciais e reduzir a inflação. 

Atualmente, na América Latina, três países são dolarizados: Equador, El Salvador e Panamá. Contudo, o caso da Argentina é bastante individual, já que para dolarizar um país é necessário ter reserva de dólar, justamente o que o nosso vizinho não tem. 

O SBT News conversou com a doutora em economia e professora do Insper Juliana Inhasz sobre o que envolve o processo de dolarização, as dificuldades de implementação, assim como possíveis vantagens e consequências. 

P: Quais são os principais motivos para a Argentina querer dolarizar a economia?

R: No caso da economia da Argentina, é por uma inflação muito elevada. A economia está contaminada por um processo inflacionário, a moeda doméstica está contaminada por um processo inflacionário muito forte e de muito difícil solução. Então, quando você vê que a sua moeda já não é suficiente para conseguir, de alguma maneira, segurar as transações sem gerar inflação, a dolarização é uma saída, ainda que um pouco drástica. Abrir mão da sua moeda e naturalmente de toda a sua possibilidade de política monetária, para conseguir fazer política com a moeda do outro, utilizar a moeda do outro como uma forma de realizar trocas.

P: Quais podem ser as consequências?

R: O grande problema é que quando eu abro mão de uma moeda que eu gerencio para uma moeda que outro gerencia, eu posso fazer qualquer tipo de intervenção no mercado com aquela moeda, mas eu não tenho controle, por exemplo, sobre a impressão monetária, então, naturalmente, a gente perde toda a possibilidade de estimular a economia com políticas de introdução monetária, de expansão monetária. Mas é uma possibilidade.

P: Então, a moeda americana, por ser mais confiável, teoricamente traz maior estabilidade econômica?

R: Isso. Porque, no final das contas, o que a economia argentina precisa é que seja utilizada uma moeda forte, uma moeda que seja de alguma forma crível, para que eles consigam retornar a um patamar de negociação. Hoje, como a moeda é muito fraca, as pessoas não guardam dinheiro, elas investem muito pouco, elas não têm confiança na economia. Uma moeda forte retomaria essa confiança, criaria, inclusive, a possibilidade de poupança, de investimento. Então, isso tudo faria com que a Argentina tivesse um contexto econômico muito mais favorável, e é isso que eles enxergam: "eu troco a minha moeda moeda ruim para uma moeda boa, a moeda boa é confiável, todo mundo tem dólar, então, como todo mundo tem dólar e todo mundo quer negociar com quem tem dólar, as pessoas vão negociar comigo e a minha economia volta a ter dinamismo". Esse é o pensamento. 

P: Como funciona para aprovar uma proposta de dolarização?

R: Assim como acontece no Brasil, o Milei terá que aprovar essa proposta no Congresso deles, tem todo um trâmite político primeiro para que essa proposta saia do papel. Aqui no Brasil, por exemplo, se a gente tivesse que fazer alguma coisa do tipo, teria que passar também pelo Conselho Monetário Nacional (CMN).

P: E para implementar?

R: A partir do momento que essa medida é de fato aprovada, ela demora a ser implementada integralmente, porque é necessário um período de transição para que as pessoas comecem a ter a outra moeda -- no caso o dólar -- e para que as pessoas comecem a transacionar com o dólar. Sem, no entanto, entender que esse dólar está inflacionado. Nesse sentido, existe um período de transição. No caso do Milei, eram previstos 16 meses para que essa transição acontecesse e fosse possível dolarizar a economia inteira. Ou seja, você vai dolarizando por setores, por faixas. Primeiro, se dolariza alguns salários, depois você dolariza alguns pagamentos de contas de consumo, de imposto, vai intercalando até que a população entenda que existe uma outra moeda muito mais confiável. A partir desse momento é que realmente o dólar entra na economia.

P: E quais são as barreiras para implementar essa medida?

R: A aprovação da dolarização já me parece ser uma grande barreira, mas tem uma outra grande barreira no caso da dolarização da Argentina, que é eles terem reservas suficientes para isso. Então, esse tempo de 16 meses também é importante para que a economia argentina volte a ter a confiança do mercado para conseguir entrar dólar. Ou seja, é um período longo, mas que, ao mesmo tempo, pela necessidade de dólar da economia argentina, é um período bem desafiador. Eles vão ter que ter muito dólar, e, particularmente, essa é a maior dificuldade: como é que você vai colocar dólar em uma economia como a da Argentina, que hoje padece de uma crise de confiança tão grande? 

P: Quais casos de dolarização a Argentina poderia ter como exemplo?

R: Dos casos de dolarização que deram certo, se eu não me engano, o do Equador é o mais recente e foi uma dolarização que deu relativamente certo. Contudo, a gente precisa ponderar o tamanho da economia do Equador e o tamanho da economia da Argentina, e a relevância dos dois no mercado internacional. Mas é importantíssimo deixar claro que só a dolarização não resolve. Os países que conseguiram dolarizar adequadamente são países que aliaram a política monetária a um contexto de política fiscal. O que isso significa? Que eles fizeram múltiplas reformas, pensaram em outras medidas, além da dolarização. 

P: Em caso de dolarização, qual vai ser o mecanismo utilizado para calcular o valor dos salários, dos produtos?

R: No caso da Argentina, não existe ainda um consenso total de qual mecanismo será utilizado, o que a gente entende como o mecanismo mais corriqueiro é essa dolarização de trocar o numerário. Como funciona? Eu tiro todos os pesos de circulação, até um determinado prazo, e troco por dólar. Então aconteceria como acontece se você estivesse na economia americana. Você vai comprar um quilo de carne, você vai pagar tantos dólares, e as pessoas teriam dólar. Então, essa é a dolarização que aparentemente é a que o Milei propõe. Não existe ainda um plano, nada muito formal. Agora, a economia argentina já está dolarizada. Porque as pessoas guardam dinheiro em dólar, dado que elas não conseguem guardar nada em peso, elas buscam o dólar como uma forma de proteção, porque o dólar não está contaminado pela inflação argentina. O dólar reflete a inflação americana, que é muito baixa. Então, nesse cenário, aconteceria como acontece em todos os lugares: a gente teria uma economia que funcionaria na base de troca de dólares por mercadorias e serviços.

P: Uma das propostas do Milei é fechar o Banco Central da Argentina. Se houver uma dolarização, isso será possível?

R: Ele pode fechar o Banco Central, com moeda própria, desde que ele tenha uma outra autoridade monetária responsável. Então, se o governo, por exemplo, o que não é o ideal, absolve em um determinado país as funções monetárias, ele não precisa de uma autoridade monetária, ele mesmo poderia seguir. No caso do Milei, as propostas estão ligadas. Ele entende que o peso não é bom, então como a moeda do país não é boa, eu abro mão dela, e uma parte do trabalho do Banco Central não aconteceria, não precisaria ser feito. Porque uma parte do que o Banco Central faz é gerenciar a moeda. Agora, ainda que ele de alguma maneira dolarize a economia, o Banco Central também é importante para, de alguma forma, ajudar a controlar entradas e saídas. Pode ser que ele não seja relevante na condução de políticas muito específicas, mas é relevante na mensuração, na contabilização. Então me parece um pouco radical demais extinguir o Banco Central, mas nesse cenário é uma possibilidade, já que é uma economia que não vai mais ter a própria moeda.

P: E a dolarização é realmente a solução para a crise argentina?

R: Eu compreendo o intuito do Milei ao fazer a dolarização. Ele entende que a inflação é um problema muito grave dentro do contexto, e ele quer dissipar essa inflação. Por outro lado, é uma decisão muito radical. Existe uma parcela dessa decisão que eu não sei se ele está colocando na conta direito. A economia argentina, hoje, não é uma economia que cresce, mas é uma economia que continua tendo muita demanda. Por que? As pessoas consomem porque sabem que hoje elas podem ter 1.000 pesos que podem pagar a conta de um restaurante, mas que, daqui duas semanas,com o mesmo valor talvez não consigam nem pagar a metade do café da manhã. Então, o que acontece é que as pessoas, como elas não têm como guardar, elas têm que consumir, porque, de uma forma muito racional, elas entendem que, se elas consumirem hoje, elas estão consumindo muito mais do que aquilo que elas poderiam consumir se elas deixassem para depois. Então, isso tem ainda gerado algum dinamismo na economia da Argentina. Mas quando você perde a possibilidade de moeda própria, ainda que você estabilize a economia ao redor do dólar, eles vão perder completamente a possibilidade de estimular a economia e reduzir o desemprego, porque não tem mais política monetária para fazer isso. Eles só vão conseguir fazer isso do lado fiscal. E do lado fiscal, se o Milei fizer o que tem que ser feito, ele vai ter que fazer um baita de um aperto. Ou seja, estamos falando de uma economia que vai necessariamente entrar em uma recessão. Sem a política monetária, ele perde toda a possibilidade de redução do custo dessa política, dessa recepção, porque ele perde completamente a possibilidade de estimular a economia em momentos de grande crise. Então o grande problema nesse caso, é que existe um benefício de fazer a dolarização -- os dados mostram que quem dolariza, depois fica com inflação menor -- mas a economia argentina é um caso muito particular e o Milei tem que estar muito pronto para uma recessão, que ele não vai poder minimizar.

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