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Erdogan deixará o poder? O que você precisa saber sobre as eleições na Turquia

Pleito deste domingo é considerado histórico e deve determinar se o país está à beira de uma ditadura

Neste domingo (14.mai), turcos vão às urnas na eleição presidencial e parlamentar mais importante do ano para a geopolítica. O resultado da disputa pode acabar com duas décadas de domínio de Recep Tayyip Erdogan sobre a Turquia.

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O pleito decidirá não somente o futuro de 85 milhões de pessoas, mas também da segurança na Europa e no Oriente Médio. Assim como irá definir o papel da Turquia na Otan (Aliança Militar do Norte) -- o país tem o segundo maior exército do grupo, atrás somente dos Estados Unidos.

O descongelamento das negociações de adesão à União Europeia; a relação com Washington e Moscou; a política migratória do país; e o papel de Ancara na guerra da Ucrânia também estão em jogo. 

Recep Tayyip Erdogan

Recep Tayyip Erdogan está há 20 anos no poder
Recep Tayyip Erdogan está há 20 anos no poder | Ozan Kose/AFP

Para entender a importância do pleito, contudo, é necessário primeiro voltar à controversa figura de Recep Tayyip Erdogan.

Prefeito bem-sucedido de Istambul de 1994 a 1998, Erdogan se filiou ao Partido da Justiça e Desenvolvimento (AKP), de vertente conservadora e nacionalista, em 2002, sendo eleito primeiro-ministro no ano seguinte, com uma proposta diferente da qual a República da Turquia foi construída. É o que explica o doutor em História pela Unesp, pesquisador associado ao Grupo de Estudos e Pesquisa sobre o Oriente Médio (Gepom), Heitor Loureiro. 

"A República da Turquia foi construída sobre os alicerces de uma república laica na qual a religião mais popular é o islã, a vertente sunita, mas o uso do véu não é obrigatório como é nos outros países. Quando o Erdogan assume, ele assume com uma postura muito mais religiosa, muito mais conservadora, e vai fazendo aos poucos uma série de movimentos para se apoiar nessa parcela da população turca, que é maioria", afirma.

A economia turca registrou um grande crescimento durante a primeira década de Erdogan no poder, além de enormes projetos de infraestrutura. O frenesi da construção, aliás, permitiu que turcos com menor nível de escolaridade entrassem no mercado de trabalho, consolidando a base eleitoral do AKP.

Todavia, as coisas mudam a partir de 2013, quando o governo reprime brutalmente protestos iniciados pela preservação de uma praça e acabaram tomando proporção nacional. Em 2014, Erdogan é eleito presidente, posto que era meramente cerimonial até 2017, quando o político, reagindo a um golpe fracassado em 2016, transformou o sistema político do país em presidencialismo e se reelegeu com muito mais poderes.

A partir daí, Erdogan levou a Turquia rumo ao autoritarismo. Além de passar a ser o único responsável pela nomeação -- e demissão -- de ministros e juízes, o presidente também se deu poderes para governar por decreto. No mais, conseguiu que seu partido tivesse a maioria dos assentos no parlamento, cerceou e prendeu opositores, e passou a controlar os meios de comunicação.

Com tantos poderes na mão, Erdogan passou a gerir mal a economia. Nos últimos anos, abandonou a política econômica ortodoxa, a inflação disparou e a lira desvalorizou.

"Existem uma série de problemas de condução da política econômica por parte do Erdogan, ele chegou a nomear parentes para cargos importantes da economia da Turquia, o que é próprio de regimes autocráticos. Como não tem sociedade civil articulada, oposição e liberdade de imprensa para criticar os rumos da política econômica, ele começou a nomear pessoas que não tinham competência para tal e aí a lira derreteu e a inflação da Turquia bateu quase 90% no ano passado", exemplifica Loureiro.

Além da crise no custo de vida, há também a questão dos refugiados sírios. A Turquia abriga cerca de 4 milhões de sírios que fugiram da guerra civil que perdura desde 2015, sobrecarregando os serviços básicos e aumentando o desemprego no país.

Somando com as consequências do terremoto que abalou a Turquia e Síria, em fevereiro deste ano, provocando mais de 50 mil mortes, e a lenta resposta do governo no resgate das vítimas, forma-se a tempestade perfeita para o presidente de 69 anos em busca da reeleição.

"Esses três fatores: a economia, o terremoto, e os refugiados sírios, produzem um cenário que permite que a gente entenda porque o Erdogan está perdendo popularidade, e outro candidato surja com reais chances de vitória", analisa o historiador. 

Kemal Kilicdaroglu

Líder do Partido Republicano do Povo (CHP) aparece como favorito nas pesquisas de intenção de voto
Líder do Partido Republicano do Povo (CHP) aparece como favorito nas pesquisas de intenção de voto | Adem Altan/AFP

O candidato em questão é Kemal Kilicdaroglu, líder do Partido Republicano do Povo (CHP), o mais antigo do país e fundador da República da Turquia. Representando uma coalizão de seis partidos, que inclui liberais, nacionalista e conservadores, o ex-funcionário público de 74 anos promete retomar a democracia no país.

Loureiro pontua que Kilicdaroglu é um político experimentado, que está há pelo menos 20 anos no Parlamento da Turquia.

"Ele é um adversário da política turca muito conhecido, muito respeitado e palatável. Se for eleito, terá fácil circulação no ambiente internacional", afirma. 

Na última pesquisa eleitoral divulgada pelo instituto de pesquisas turco Konda, em 7 de maio, Kilicdaroglu aparece com 49.3% das intenções de voto e Erdogan com 43.7%. Na 5ª feira (11.mai), o pleito ficou ainda mais disputado com a desistência de Muharrem Ince, líder do partido Memleket (Pátria), de 59 anos, que aparecia com 2,2% das intenções de voto.

Caso consiga 50% dos votos, Kilicdaroglu pode ganhar a eleição no primeiro turno
Caso consiga 50% dos votos, Kilicdaroglu pode ganhar a eleição no primeiro turno

Ince disputou a eleição presidencial com Erdogan em 2018 e foi derrotado em primeiro turno. Há ainda um quarto candidato, Sinan Ogan, que aparece com 4,8% das intenções de voto.

A Turquia tem um sistema eleitoral parecido ao do Brasil, ou seja, se Kilicdaroglu garantir mais de 50% dos votos pode ganhar a eleição já no primeiro turno. Caso contrário, a corrida eleitoral vai para o segundo turno, marcado para 28 de maio. 

Domesticamente, entre as propostas do candidato está a restauração do sistema parlamentar da Turquia, isto é, o presidente volta a ter um papel mais cerimonial e mandato de sete anos. A coalizão também promete um retorno imediato à ortodoxia econômica.

Na opinião do pesquisador do Gepom, o que Kilicdaroglu tem que fazer é reconstruir uma sociedade civil funcional, isso significa retomar a liberdade de expressão, liberar órgãos da imprensa que estão sob controle do governo desde 2016 e libertar líderes curdos (grupo étnico bastante perseguido por Erdogan) que estão presos ilegalmente.

Dito isso, Loureiro aponta, contudo, que não devemos esperar mudanças drásticas. Pelo menos, não a curto prazo.

"Acho que esses grandes temas da política turca não vão ser alterados drasticamente. Eu acho que ele vai começar a construir diálogo e construir pontes com parceiros, com países ou com atores domésticos escanteados pelo Erdogan. Mas, de novo, ele é de um partido tradicional, o partido mais antigo da República da Turquia, e não é um político que propõe grandes mudanças, a meu ver, ainda que tenha na coalizão partidos bastante interessante e muito mais progressistas", disse

E por que essa eleição interessa tanto aos Estados Unidos, Europa e, até mesmo, à Rússia? 

Os laços históricos e comerciais de Ancara com o Oriente Médio e Cáucaso são centrais aos interesses europeus, principalmente energéticos e de segurança. País geoestratégico e a 11ª maior economia do planeta, a Turquia também é muito importante e ativa em questões na Eurásia, incluindo a guerra na Síria, as negociações da guerra na Ucrânia e, como dito anteriormente, a situação dos refugiados sírios. 

A última questão, inclusive, é usada com frequência por Erdogan para chantagear a Europa, após o acordo de readmissão de refugiados entre o país e o bloco. 

Único membro de maioria islâmica da Otan, a Turquia também usou a recente adesão da Suécia e Finlândia à aliança para barganhar a entrega de opositores curdos de Erdogan que vivem nos países. 

Mas é difícil falar em mudanças muito radicais caso Kilicdaroglu vença. O que deve acontecer é que Otan, Estados Unidos e Europa terão um aliado menos imprevisível e autocrático. 

"Ainda que os curdos sejam uma pauta de qualquer governo turco há muitas décadas, eu acredito que esse tipo de chantagem não teria mais lugar num governo de caráter democrático que seria o de Kilicdaroglu", pondera Loureiro.

Já Moscou deve esperar um relacionamento menos impulsionado pelas similaridades ideológicas e o desagrado com Washington.

"O Putin (presidente da Rússia) e o Erdogan sempre tiveram muitas diferenças, mas eles preferiam muito mais lidar um com o outro do que lidar com os Estados Unidos e com a Europa", finaliza o historiador.

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