Como fica o gasoduto que une Rússia à UE em meio à crise na Ucrânia?
Alvo de eventuais sanções, Nord Stream 2 é vital para dependência energética da União Europeia e economia russa
Em meio às tensões na Ucrânia, um gasoduto de 1.230 quilômetros que irá transportar gás natural russo sob o Mar Báltico para a Alemanha ocupa um lugar de destaque na crise entre Rússia e países ocidentais membros da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan).
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Com capacidade de transportar 55 bilhões de metros cúbicos de gás natural por ano, o Nord Stream 2 foi finalizado em setembro de 2021, e seria mais uma fonte de distribuição de gás natural russo para a Europa, que, cada vez mais, dependerá de importações para garantir a sua segurança energética. Boa parte da produção de energia do continente provêm de energia nuclear e queima de carvão, que estão sendo desativadas na tentativa de uma transição energética para fontes mais limpas.
A Gazprom -- empresa estatal de energia russa -- é a maior fornecedora de gás natural da União Europeia há décadas e informou que, em 2021, o consumo do bloco foi recorde. Até 2035, a UE precisará importar cerca de 120 bcm (bilhões de metros cúbicos) a mais de gás por ano. As perspectivas de produção dos principais produtores de gás, como Holanda e Reino Unido, bem como a Noruega, estão caindo. Ao mesmo tempo, espera-se que a demanda por gás continue, devido às suas baixas emissões de carbono. O Nord Stream 2 terá capacidade para atender a cerca de um terço dos requisitos de importação da UE.
No entanto, ao endereçar a atual situação na Ucrânia, durante uma visita do chanceler alemão Olaf Scholz aos Estados Unidos, o presidente norte-americano, Joe Biden, colocou o futuro do gasoduto em xeque. "Se a Rússia invadir -- e isso significa tanques e tropas cruzando a fronteira da Ucrânia novamente --, não haverá mais Nord Stream 2", falou na 2ª feira (7.fev), em coletiva de imprensa. Em tom mais moderado, Scholz não confirmou a informação, somente reafirmou a aliança entre os países. "Digo aos nossos amigos americanos, estaremos unidos. Agiremos juntos e tomaremos todas as medidas necessárias e todas as medidas necessárias serão feitas por todos nós juntos"
Para Angelo de Oliveira Segrillo, historiador brasileiro e professor associado no departamento de História da Universidade de São Paulo (USP), especializado na história da Rússia e União Soviética, a declaração de Scholz é o "famoso silêncio eloquente". Ele explica que, como fornecedora de gás, a Rússia sempre foi confiável, mas que essa relação econômica está sendo levada como uma possível arma de pressão e represálias caso a Rússia invada ou faça alguma ação militar.
"Ninguém coloca em dúvida a confiança na Rússia como fornecedora de gás para a Europa, ela nunca deu furo. Ela sempre forneceu gás. Na época da União Soviética, nunca houve furo, nunca houve problema, houve problema depois, porque os oleodutos e gasodutos passavam pela Ucrânia e, às vezes, eles seguravam o fornecimento. Duas vezes deu problema em relação a isso, mas, de maneira geral, a Rússia sempre foi um fornecedor muito confiável, então, essa parte econômica nunca teve problema nenhum, mas agora ela está sendo levada como possível arma de pressão, de represálias caso a Rússia invada ou faça alguma ação militar."
O historiador entende que evitar um conflito vai muito além das questões econômicas, mesmo que elas tenham um peso importante na atual crise na Ucrânia. "Para a União Europeia interessa que não haja nenhum conflito porque pode interromper o fornecimento de gás, que é muito importante para ela, e muito importante para a Rússia -- é uma dependência dos dois lados. Agora, uma outra razão pela qual a Europa é menos bilicosa que os Estados Unidos é por causa da interdepêndia economia e não podemos esquecer a questão histórica. A Europa teve duas grandes guerras mundias dentro dela no século passado, isso fica na memória dos europeus. Esse conflito, que aparentemente é entre Ucrânia e Rússia, pode generalizar. A Primeira Guerra Mundial começou assim, ninguém queria a guerra e ninguém acreditava. Achavam que seria algo mais localizado, e, de repente, teve a Primeira Guerra Mundial, que aconteceu muito por conta das alianças militares -- um conflito localizado entre Sérvia e Áustria virou um conflito generalizado por causa das alianças militares. A Europa não quer um conflito por questões econômicas e porque eles têm na memória histórica deles a questão das guerras mundiais -- eles sabem que algo localizado pode se espandir e tornar-se generalizado."
A crise na Ucrânia, no entanto, já é um grande atraso para a inauguração do gasoduto de 9,5 bilhões de euros. Polêmico desde o seu projeto -- por questão da grande dependência energética da União Europeia em relação a Rússia e problemas com a legislação da União Europeia --, o funcionamento do Nord Stream 2 não deve acontecer tão cedo, na avaliação do doutor em Relações Internacionais e professor da USP Kai Enno Lehmann. "O Nord Stream 2, politicamente, nesse momento na Alemanha seria absolutamente impensável. Eu não consigo imaginar uma situação em que Olaf Scholz diria 'vamos em frente com isso' diante de uma opinião pública que é muito hostil a esse projeto e é mais hostil ainda por causa dos problemas atuais. O governo Olaf Scholz é muito novo, não teve um início promissor -- principalmente em termos domésticos --, já não é muito popular, então ele não vai arriscar a popularidade dele para isso e isso é a cartada que a Alemanha tem, porque a Rússia quer esse projeto, vai gerar muitos recursos, e é a forma que a Alemanha pode barganhar. "
Tão imprevisível quanto os próximos capítulos da disputa na Ucrânia, o destino do gasoduto que traduz a interdependência entre União Europeia e Rússia parece depender da boa vontade dos atores em resolver os seus conflitos de forma diplomática.