Justiça

Garantista sim, anti-Lava Jato, não, diz novo juiz de Curitiba

Eduardo Appio assumiu 237 processos, defende a operação, mas critica métodos; 'não viraria político'

A Operação Lava Jato não acabou! É o que afirma Eduardo Appio, o novo juiz titular da 13ª Vara Federal de Curitiba, a origem da polêmica investigação de combate à corrupção, iniciada em 2014, que colocou na cadeia poderosos empresários e políticos, entre eles, o atual presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva (PT) - que ficou detido 518 dias.

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Nove anos depois de criada, a Lava Jato em Curitiba tem ainda 237 processos criminais em andamento, com pessoas e crimes a serem julgados. "A Lava Jato não morreu! Temos 237 processos tramitando, 71 deles em caráter sigiloso, e muitos milhões bloqueados aqui na 13ª Vara Federal de Curitiba."

Opostamente distinto do primeiro juiz da Lava Jato, o senador Sérgio Moro (União Brasil-PR), Appio assume o título de "garantista" - mas "não no sentido pejorativo", adverte. " No sentido de que as garantias da Constituição são o maior dever de nós juízes."

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Contra uso de prisões preventivas para obter informações de investigados, contra a execução da pena em segunda instância, crítico das operações "espetacularizadas", como a que prendeu o ex-presidente Michel Temer (MDB), em 2019. Appio é especialista em Direito Constitucional, leciona e tem livros publicados na área. "Prisões preventivas não podem ser utilizadas como instrumento de coação, para se obter confissão dos acusados." 

Em entrevista exclusiva ao SBT News, o novo juiz da Lava Jato em Curitiba, Eduardo Appio, falou sobre:

  • A continuidade da Lava Jato;
  • Os processos enviados aos TREs;
  • Sobre os erros e excessos da operação;
  • Prisões preventivas e delação premiada;
  • Execução da pena em 2ª instância;
  • Sobre magistratura e política;
  • Críticas de Deltan e Moro.

O novo juiz da Lava Jato tem 53 anos, completos na última 2ª feira (20.fev). Filho do ex-deputado federal Francisco Appio, do PP do Rio Grande do Sul, que faleceu em novembro de 2022. Assumiu a vaga de Luiz Antônio Bonat, que foi promovido a desembargador do Tribunal Regional Federal da 4ª Região (TRF-4), em Porto Alegre. Natural do Rio Grande do Sul, estava na 2ª Turma Recursal dos Juizados Especiais Federais do Paraná, basicamente atuando em questões de direito tributário. Se candidatou para a vaga de Bonat, na seleção interna entre magistrados. 

"Eu nunca deixaria de ser juiz para ir para a política ou qualquer outra atividade", juiz federal Eduardo Appio, novo titular da 13ª Vara Federal de Curitiba.

A 13ª Vara Federal de Curitiba é especializada em casos de crimes financeiros federais e também cuida de casos do Tribunal do Júri, quando o crime é de homicídio. Appio tem formação em Direito Penal, foi promotor de Justiça, no início da carreira e juiz estadual, em Santa Catarina, antes de virar juiz federal - cargo que ocupa há 23 anos. "Quero é que a Operação Lava Jato não se converta numa espécie de Caso Banestado 2." 

jf
Justiça Federal, em Curitiba, o berço da Laão/JFPRva Jato | Divulgaç

Leia a íntegra da entrevista ao SBT News:

Doutor Eduardo Appio, o senhor assumiu há duas semanas os processos da Lava Jato. A operação acabou? Qual é a dimensão atual da Lava Jato?

Se consolidou essa lenda urbana de que a Lava Lato havia morrido, após decisões do Supremo Tribunal Federal e outras questões. Isso não é verdadeiro. É o meu dever de prestação de contas. A Lava Jato hoje tem 237 processos, que estão tramitando regularmente. Temos audiências quase todos os dias. As pessoas talvez não estejam atentas ao fato, claro. Nós não temos aquele volume quase que rotineiro, diário, de prisões, de delações. Esse primeiro volume, que aconteceu entre os anos de 2014 a 2018, é um volume que envolvia uma fase mais de inquérito policial, de primeiros elementos da Operação Lava Jato. Agora estamos em uma segunda fase, que é a de processar os envolvidos, todos os envolvidos, de rever a questão das delações, ver as informações que foram prestadas, fazer um controle de bens e valores que foram aprendidos, fazer um acompanhamento de todos os processos que foram remetidos às justiças eleitorais, por decisão do Supremo Tribunal Federal, que entendeu que aqueles processos, que não tinham relação com crimes comum, seriam remetidos, pela natureza, à Justiça Eleitoral. O que nós não queremos, de forma alguma, é que a Operação Lava Jato morra. Até porque, o espírito da Lava Jato, desde o primeiro momento, era um espírito republicano, positivo, apartidário, isento do ponto de vista político. E esse foi o primeiro lema, foi quando a bandeira inicial da Lava Jato foi desfraldada, que a lei seria para todos e que seria aplicada de forma indistinta, com neutralidade pelos juízes e procuradores. Então é isso que nós queremos assegurar. Agora existem novos procuradores designados pelo procurador-geral da República, Augusto Aras, para trabalharem na força-tarefa do Ministério Público Federal, o Gaeco.

"Nós queremos assegurar para a comunidade, assegurar para a sociedade brasileira, que não só a Operação Lava Jato está viva e vai seguramente produzir bons frutos e bons resultados no futuro, como também o fato de que existe uma plena e total isenção partidária. A lei tem que valer para todos. Não interessa se é direita, esquerda, acima, abaixo. A lei é feita para todos."

Boa parte dos processos da Lava Jato foi enviada para a Justiça Eleitoral. Há um risco de acabarem sem uma decisão, seja ela eleitoral ou criminal?

Eu não falo em nome do Judiciário, evidentemente, mas eu como cidadão e contribuinte quero é que a Operação Lava Jato não se converta numa espécie de Caso Banestado 2. O Caso Banestado 2, para aqueles que não acompanham, foi um caso famoso, o primeiro dos grandes casos envolvendo crimes econômicos e remessa de dinheiro para o exterior, que na época envolveu, inclusive, o mesmo doleiro que anos depois, que é o Alberto Youssef, foi um colaborador da Justiça. Naquele caso, praticamente todos os processos, as centenas de processos envolvendo bilhões de dólares foram arquivados por conta de prescrição. A prescrição, o que é, para o telespectador normal? É quando o processo fica parado muito tempo, se manifesta o desinteresse do Estado em continuar com o processo criminal contra o acusado e aquele processo acaba sendo arquivado. Então os processos não podem demorar, em matéria criminal, até porque isso está na Constituição. Tem que ter uma rápida tramitação, rápido andamento. As justiças eleitorais, infelizmente, os juízes de Direito funcionam como juízes eleitorais. Então, durante as eleições, esses juízes se dedicam praticamente o tempo todo a questão das eleições, dos votos, contagem de votos etc. No restante do tempo, eles estão com as suas atribuições comuns. E são muitas as atribuições que envolvem promotores e juízes eleitorais estaduais, no Brasil inteiro, então não há um juiz eleitoral que consiga...Então é claro, nós temos alguns processos que já estão parados aí há mais de oito meses, processos que envolvem figuras políticas notórias, famosas que foram capa de todos os jornais, que foram entrevistados nos principais telejornais. São casos que, evidentemente, a sociedade não compreende como que é que esses casos não andam. Claro que, passados sete, oito anos, os advogados dos acusados, que tiveram esses processo remetidos para Justiça Eleitoral, pedem todos os dias a liberação desses valores, dessas contas, seja no Brasil, na Suíça ou em qualquer paraíso fiscal. Valores, bens, Imóveis, principalmente, porque eles ficaram congelados nos últimos anos, ficaram bloqueados por decisão judicial. Então, agora, nós estamos nesse limbo. Tenho reforçado junto às justiças eleitorais, que aqueles processos que já foram enviados há mais tempo, a importância, a necessidade de que lhes seja dado andamento rápido, célere. Sob pena de nós termos, algum dia, uma prescrição e um arquivamento. Nós não queremos que tudo vá para prescrição, ou que tudo seja arquivado. Não é intencional, evidentemente, mas as pessoas costumam falar "ah, não pode dar em pizza". Essa é uma ideia que já vem desde a década de 90, de que tudo não pode acabar em pizza. Então, nós estamos tentando - nada contra os pizzaiolos, nada contra as pizzarias, sou fã de pizza -, não queremos a Lava Jato seja arquivada. Eu fui um dos maiores entusiastas no início da operação, cheguei a colocar adesivo "Eu apoio a Lava Jato". E eu, como qualquer brasileiro, via aí de forma emocionada, que algo de diferente e revolucionário estava acontecendo. Nós não queremos que esse espírito, evidentemente, morra.

"Queremos que a lei seja aplicada indistintamente, não interessa o partido político. E essa garantia eu posso dar, de total neutralidade político-partidária. Nunca fui vinculado a nenhum partido político, nem militância política, a minha vida é dedicada ao serviço público."

Primeiro, três anos como promotor de Justiça, aqui no Paraná, depois um ano e meio como juiz de Direito no Rio Grande do Sul e, finalmente, há 23 anos como juiz federal, aqui na Justiça Federal, que é uma função que muito me orgulha. Eu nunca deixaria de ser juiz para ir para a política ou qualquer outra atividade. Porque é uma função que nos torna profissionais melhores, nós aprendemos todos os dias, são crimes muito complexos, são audiências complexas, ouvindo 7, 8 delatores por tarde, sistema de engrenagem de transferência de bens para contas no exterior. Enfim, eu acredito que a Justiça Federal e os seus servidores também têm se empenhado muito em dar uma resposta. Inclusive para essa afirmação, que não é verdadeira, de que a Lava Jato morreu. Não morreu! Temos 237 processo tramitando, 71 deles em caráter sigiloso, e muitos milhões bloqueados aqui na 13ª Vara Federal de Curitiba. Sempre lembrando que um dos maiores resultados obtidos pela Operação Lava Jato foi a devolução, em acordo de colaboração, e esse foi um bonito trabalho do Ministério Público Federal, a devolução de 100 milhões de dólares, por parte de um dos gerentes ou ex-gerentes da Petrobrás. 

As delações deram outra dimensão às investigações de um caso específico na Petrobrás e muito se discutiu, se julgou sobre as delações premiadas, acordos de leniência. Houve avanços ou retrocessos? Os delatores podem sair sem qualquer punição? 

Os acordos foram implementados, estão sendo cobrados e monitorados. No caso do Alberto Youssef, é um caso um pouco particular, que foi um dos grandes doleiros do Brasil durante muito tempo, junto com Dário Messer. E o Alberto Youssef, evidentemente, ele fechou um acordo de delação premiada, isso eu falo, não é sigilo, ele é de conhecimento público, faz parte da história do nosso país. Fechou, salvo engano em 1996 ou 1997, 98, talvez, o acordo de delação com o então juiz federal que conduziu o processo, doutor Sérgio Moro, que hoje é senador. O início da Operação Banestado se deu, a partir de uma investigação de um procurador da República brilhante Celso Gress, que descobriu o esquema das contas CC-5, por onde transitavam bilhões de reais, como a conta do Banestado, em Nova Iorque. Dali eram distribuídas para praticamente todas as pessoas ricas do Brasil, que tinham condições de mandar esse dinheiro para fora, na década de 90. Então, os acordos, às vezes, não são cumpridos, e aí há uma fiscalização. No caso do Alberto Youssef houve uma nova delação premiada, com a Operação Lava Jato, que está sendo monitorada, cumprida, uma das condições é que ele não cometa novos crimes. Mas os delatores, de uma forma geral, nós não temos dados concretos sobre quanto da fortuna que reservaram para sua subsistência. Os acordos foram fechados entre advogados dos delatores e membros do Ministério Público Federal. Eram pessoas que eram acostumadas a um alto padrão de vida. Certamente houve alguma queda nesse padrão. Pessoalmente, desconheço detalhes, mas não acredito que essas pessoas estejam na pobreza ou passando necessidades. Evidente que alguns alegam que ficaram sem emprego, sem recursos e pedem a liberação de bens. Boa parte desses valores foi objeto dos acordos, foram sendo devolvidos. Mas claro, que as pessoas da comunidade, não sou eu, as pessoas perguntam a todo momento, pergunta "poxa, mas uma pessoa, um gerente da Petrobras, que devolve 100 milhões de dólares para Justiça Federal e para os cofres públicos, ela não reserva nenhum dinheiro, depois para manter o padrão de vida?". Então, isso soa um pouco estranho. Mas os detalhes de tudo isso, não sabemos. Em linhas gerais, claro, são pessoas que estão numa condição muitíssimo superior, penso eu, do que 95% da população brasileira. E especialmente nós, que estamos acompanhando aí como a desigualdade social acontece mesmo na tragédia. O SBT News está acompanhando essa tragédia em São Sebastião (SP), está vendo que, mesmo na tragédia, ricos e pobres são tratados de forma diferente. Os pobres que não conseguem deixar o local e os ricos fugindo do local e das enchentes de helicóptero. Então, infelizmente, o nosso país é marcado pela desigualdade social, inclusive na tragédia.

As delações deram outra dimensão à Lava Jato original e depois houve um freio de arrumação. O senhor é um defensor ou um crítico das delações?

Primeiro de tudo, do ponto de vista do direito comparado a outros países, inclusive os Estados Unidos, que foi um dos precursores das delações premiadas, o acordo de delação premiada é firmado entre a acusação, o Ministério Público Federal, e o acusado, que vira colaborador. O juiz da causa não se envolve no mérito do acordo, ou seja, ele não pode, simplesmente, pelo menos fora do Brasil, deixar ou não de homologar um acordo, porque acha que não está bom. Não. É um acordo entre acusação e defesa, para evitar que o processo siga, assim como os chamados acordos de não-persecução, de não acusação, pelo Ministério Público Federal. São instrumentos novos que surgiram a reboque da Operação Lava Jato, foram regularmente aprovados pelo Congresso Nacional, inclusive com voto da grande maioria dos políticos. Agora, no curso da execução desses acordos, das delações, no Brasil, como tudo isso é muito novo, muito precursor... lembrem que as primeiras delações premiadas, da década de 90, inclusive a que envolveu na época, isso é fato público, o próprio Alberto Youssef, não havia nem lei que regulamentasse no Brasil. Foi quase que uma criação dos juízes e promotores da época, algo muito revolucionário e promissor. Produz resultados ? Produz. Aí é aquela velha questão, para fazer omelete, nós temos que quebrar os ovos ? É permitido quebrar os ovos ou existe um meio termo? Existe um plano de fundo ético também sobre isso, claro. Premiar o colaborador, premiar delator, em última análise, é premiar aquela pessoa que foi um dos autores de crimes graves. "Poxa, a pessoa devolveu 100 milhões de dólares para a Justiça Federal, um gerente da Petrobras". Essa pessoa, durante muitos anos, será que não se beneficiou do esquema criminoso? Não viveu aí uma vida de príncipe, sempre nas melhores rodas sociais, no jet set Internacional, viajando, usufruindo de uma vida de luxo? Vamos premiar isso para atingir um determinado alvo, que é mais importante, que seria aquele coordenador, os coordenadores do esquema criminoso? Isso funcionou durante muito tempo no combate à máfia na Itália, na Operação Mãos Limpas. Para pegar os cabeças do grupo, se atingia, fazia uma colaboração. Agora claro, se nós formos ver o Direito Internacional, o Direito em outros países, em todos os acordos de colaboração, que eu vi, pelo menos fora do Brasil, os delatores cumprem algum tipo de pena. Não existe assim uma questão, tipo assina o acordo hoje, é libertado amanhã, devolve os valores, ou parte dos valores. Em todos os acordos fora do Brasil, o delator devolve os valores e, ainda assim, cumpre uma pena, que varia, pode ser de dois a cinco anos, em geral de prisão, em regime fechado. O Brasil talvez tenha que rediscutir um pouco essas questões. Mas isso é papel do Congresso Nacional, é papel dos senadores eleitos, dos deputados eleitos. Temos aí um ex-membro do Ministério Público Deltan Dallagnol, foi eleito deputado pelo Paraná, temos um ex-juíz muito dedicado ao serviço público, o Sérgio Moro, que hoje é senador, temos a esposa dele, que conhece bem a situação, deputada por São Paulo. Enfim, são pessoas que, certamente, vão suscitar esse grande debate em torno de críticas e virtudes da Operação Lava Jato. 

As prisões cautelares, prisões preventivas, não podem ser utilizadas como instrumento de extração, instrumento de coação, para se obter confissão dos acusados. Porque isso equivale a algum tipo de tortura. Ameaças ou qualquer tipo de prisão, ou de submissão à prisão para que a pessoa confesse vai contra a Constituição. O Supremo tem esse entendimento majoritário, porque a Constituição de 1988 diz "ninguém será obrigado a produzir prova contra si próprio."

No Senado retomaram a discussão da execução da pena em segunda instância. Foi algo que a Lava Jato defendeu, o STF aceitou e depois voltou atrás. Qual sua opinião?

Essa é uma questão política sensível, eu já escrevi sobre o tema, como professor, porque a minha vida inteira também trabalhei como professor de Direito Constitucional e publiquei 11 livros sobre o assunto. Eu, particularmente, não concordo com a ideia. Eu não sei qual foi o volume de pessoas soltas depois daquela primeira decisão do Supremo Tribunal Federal, que permitiu a chamada execução provisória de pena. Mão só no Brasil, mas fora, mesmo os chamados países de primeiro mundo, que têm todos os recursos financeiros à disposição, testes de DNA a todo momento, sempre e rotineiramente ocorre prisão e, às vezes, inclusive, execução, que tem pena de morte, em países como por exemplo Estados Unidos, de pessoas que se comprovou depois, por DNA, outros exames ou testemunhos, que aquela pessoa era inocente. Então eu ainda sou daquela velha escola que diz "é melhor termos aí 90 culpados soltos, do que termos 10 inocentes presos". Porque depois que a pessoa fica 20, 30 anos presos, não tem como voltar no tempo. O STJ (Superior Tribunal de Justiça) e o Supremo conseguem fazer uma análise daqueles casos mais graves, dos erros mais graves, e eu acredito que a decisão correta do Supremo foi a segunda e última, que diz que a Constituição não permite execução provisória. O ministro do Supremo Celso de Mello, na época, deu uma verdadeira aula magna sobre o assunto. Se falava que a decisão atingiria uma multidão de 30 mil, 40 mil presos. Na realidade, o que se ouve, é que não atingiu mais de 10 pessoas no Brasil inteiro. Inclusive, uma das pessoas, como é fato público e notório, foi o ex e atual presidente da República. Aí o Supremo veio e decidiu que não, que aquilo foi um erro do Judiciário, que a Constituição diz o contrário. Então, isso só pode ser mudado através de uma emenda constitucional. Uma emenda à Constituição exige quórum qualificado, significa que a imensa maioria de deputados e senadores, que também são políticos, tem que aprovar e endossar essa medida. Então não vai ser de fácil aprovação, não vai ser. Acredito que a Operação Lava Jato ainda que tenha deixado um legado muito positivo de devolução de valores, de revolução em matéria processual, de grandes novidades e realmente tentar tratar ricos e pobres da mesma forma. Também teve lá suas críticas naquele período, tivemos lá diálogos que foram revelados, uma série de questões. Tudo isso ficou envolto em uma névoa de desconfiança. O nosso trabalho aqui também na 13ª Vara, te falo com a maior humildade do mundo, também é desgastado. Um pouco dessa questão da credibilidade, repito, o Tribunal Regional Federal da 4ª Região tem dado o apoio irrestrito para os trabalhos, para que a gente continue firme e forte com a Lava Jato e outros trabalhos também. Temos essa compreensão histórica, todavia, ficaram sim, cicatrizes. Eu não vou ser hipócrita de dizer "não, tudo foi um mar de flores e tal". Não, nós tivemos alguns episódios polêmicos. O próprio hoje senador Sérgio Moro acabou sendo, logo depois das eleições, ministro da Justiça do presidente Jair Bolsonaro, depois de houve ali um desligamento, enfim, que foi de alguma forma um pouco polêmico também. Temos a missão de resgatar essa neutralidade, essa credibilidade que, em parte foi arranhada no primeiro grau, não no tribunal, e acima de tudo assegurar para a população, absoluta isenção político- partidária.

A Lava Jato atinge quase todos os partidos. A Lava Jato foi um recorte feito a partir do ano de 2003, primeiro ano do mandato, na época, de um partido de esquerda. Os processos que continuam, evidente que atingem pessoas de todos os partidos, e atingem pessoas que estão ou não no governo. Não existe proteção de ninguém. O que existe é o interesse, tanto nós juízes e servidores do primeiro grau, como também do Tribunal Regional Federal da 4ª Região, em que isso não seja varrido para debaixo do tapete. E que não interessa o nome da pessoa, se é ministro, ex-ministro, se é do partido de esquerda, direita, centro. A lei seja aplicada para todos.

A mesma lei que se quer que se aplicou no passado paro ex-presidente Michel Temer, para o ex-presidente e atual presidente da República (Lula), para o ex-presidente Bolsonaro. Nós queremos a lei aplicada da mesma forma, com ampla defesa e contraditório, para todos os partidos e para todos os políticos. Inclusive, por que não, e acima de tudo, para o ex-presidente Bolsonaro, que eventualmente está prestando informações em questões ligadas aos inquéritos que tramitam no Supremo Tribunal Federal sobre os quais eu não posso me manifestar, obviamente.

O sr. reforçou o caráter apolítico do trabalho do juiz. Depois que o senhor assumiu a Lava Jato, foram feitas citações a doação eleitoral feita ao PT...  

Tem muita gente que está contra a Lava Jato, que quer mesmo "ah, a Operação morreu, vai ser arquivado, o juiz não é isento do ponto de vista político-partidário". O meu dever, como juiz, como servidor público, é prestar contas à comunidade e eu te agradeço de você abrir esse espaço. O nosso respeito à liberdade de imprensa é um respeito histórico, intransigente. A liberdade de imprensa, a liberdade de manifestação, ela é a pedra angular do nosso sistema constitucional, não existe democracia, sem liberdade de imprensa, é muito simples. Então, o meu papel é prestar contas, é fazer chegar nas pessoas a ideia de absoluta isenção. Não localizei nenhum tipo de doação para partido nenhum, nem para o atual presidente Lula, nunca tive militância político-partidária, nunca foi vinculado, filiado nada a nenhum partido político, seja de centro, direita, acima, abaixo Não, de forma alguma, meu trabalho é Judiciário. Minha bandeira é Justiça Federal. Agora eu acho que, para quem foi para a política, acaba sendo também uma zona de conforto dizer "ah, a Operação Lava Jato morreu, o Judiciário não funciona, todos os processos são arquivados, são varridos para debaixo do tapete, a lei no Brasil é a lei da pizza, tudo acaba em pizza". Não é verdade! Os processos estão tramitando, quem quiser está convidado a acompanhar as audiências, que não tenham sigilo, os próprios jornalistas, que nós fazemos praticamente dia sim dia não, trabalho é pesado, em geral, as audiências duram 6 horas a 7 horas, envolvem delatores, crimes complexos. Estou cobrando das justiças eleitorais a continuidade desses processos. Tem muita gente que quer dizer que a Lava Jato morreu, porque não quer que a Lava Jato ande. Quer dizer que "olha, agora o campo de disputa é só na política, no Congresso Nacional". Não, eu não acredito nisso, os processos que estão aqui não vão ser todos arquivados, não vão para a prescrição, não vai ser um Caso Banestado 2.

Criticaram o sr. por ser filho de um político, seu pai recém falecido foi deputado. Isso o coloca sob suspeição ? Chegou-se a falar numa citação ao nome dele em uma delação.

Não, de forma alguma. Se fosse o impedimento, então os filhos, tanto do Dallagnol e do Moro, não poderiam nunca ser juízes e promotores no futuro. É isso que está se dizendo? Então, se um dia eles vierem a fazer concurso público, uma carreira tão bonita quanto o Ministério Público, vão dizer "não, é filho do Deltan Dallagnol, é filho do Sérgio Moro, então não pode ser juiz, nem promotor". É isso ? É a consequência lógica. Agora, tirando essa questão mais folclórica, de fato a minha família continua no luto, infelizmente meu pai, que foi um político pelo Rio Grande do Sul durante 30 anos e não existe uma vírgula sequer que fale uma vírgula em relação a conduta do meu pai. Meu pai sempre foi, inclusive, um político tradicionalmente de direita. Foi colega de bancada do ex-presidente Bolsonaro. A mesma bancada, o mesmo partido e sempre defendeu uma pauta mais de centro-direita e sempre respeitou totalmente os adversários. Sempre transitou bem em todos os partidos e sempre se relacionou bem com pessoas em todos os partidos. Nunca houve uma vírgula falada contra ele em 30 anos de atividade na política, Então claro que surpreende a nossa família, que está enlutada, que perdeu um pai por um AVC hemorrágico, recentemente, no hospital em Porto Alegre, ver, evidentemente, o atual deputado que é um político. Hoje os políticos precisam de polêmica para aparecer na internet, no Twitter. Ver uma uma afirmação caluniosa contra o homem de bem, uma pessoa honesta, recém falecido... Enfim, eu, individualmente, por uma questão ética, evito falar sobre os mortos, muito menos falar mal. E tenho certeza que a tradição das pessoas das famílias de bem no Brasil é "se for para falar de uma pessoa, recém falecida, é para falar bem se for para elogiar senão, não fale".

Senhor assume o título de um "garantista" à frente da Lava Jato? E não posso deixar de perguntar, como o sr vê o momento político no país, os questionamentos ao Judiciário, à legitimidade do Congresso, a tentativa de golpe no 8/1?

Nos últimos anos, no Brasil, flertou-se de uma forma direta ou indireta com o perigo. Flertar com a chama do perigo, sempre sabendo que a democracia é uma chama muito frágil e que pode ser apagada no primeiro vento que venha, isso é muito delicado. Nós que somos professor de direito constitucional escrevendo sobre o assunto há muito tempo vemos a Constituição e também, porque não, o Supremo Tribunal Federal como um Santo Graal, como um santuário de algo muito irrenunciável, que é a democracia, é a liberdade de imprensa, é a liberdade de manifestação. Mas uma liberdade de manifestação sadia, como é que faz por exemplo a imprensa, todos vocês, não é uma liberdade manifestação que significa assassinar pessoas, depredar patrimônio público, atirar contra policiais federais, no exercício das funções. Cabe ao Supremo Tribunal Federal julgar no futuro. Mas eu, obviamente que, como todas as pessoas de bem, todas as pessoas que são cumpridoras dos seus deveres no dia a dia, pais de família, fiquei bastante perplexo e afetado pelo que aconteceu. Eu acabei não votando nas últimas eleições porque eu estava cuidando já meu pai enfermo, meu pai acabou falecendo antes do segundo turno, mas a última eleição foi, de fato, muito polêmica e marcada por esse evento traumático de 8 de janeiro, que quiçá não se repita no Brasil. Nós queremos que as regras do jogo sempre sejam observadas por todos, que a ampla defesa e o contraditório e as garantias constitucionais atendam todos. Por exemplo, um fato que marcou muito e chocou muitas pessoas no passado foi, na época, aquela prisão em via pública do ex-presidente Michel Temer. Marcou porque Michel Temer era uma pessoa conhecida, um jurista notável, com muitos livros publicados, foi um ex-presidente, era uma pessoa de centro, centro-direta, era uma pessoa entendiam como sendo uma personalidade histórica do Brasil, como já foram outros, como José Sarney, como outros personalidade importante do país, Fernando Henrique Cardoso etc. E aí aquela prisão em via pública filmado em tempo real, com fuzis de grosso calibre. São coisas que chocam as pessoas, chocam a nós que somos professores da área de Direito Constitucional e eu não acredito que seja o modelo certo. Esse modelo é de mostrar e exibir as pessoas em praça pública, como se fosse uma espécie de atração uma novela, uma telenovela, um filme de ficção. Então, realmente, uma pessoa de 70, quase 80 anos, uma pessoa conhecida, com endereço fixo, conhecido de todos, e um político que tem um histórico, uma biografia. Não me parece que seja o correto. Eu defendo que isso seja aplicado a todas as pessoas, não interessa se é ex-presidente, se é futuro presidente, não interessa se é Bolsonaro, se é Lula, se é Temer, Fernando Henrique, não interessa. Eu acho que todas as pessoas, a que trabalha numa banca de jornal, a pessoa que trabalha numa fruteira, a pessoa que está varrendo rua no pós-carnaval, todos têm que ser tratados da mesma forma. 

Por isso mesmo, o sr. não rejeita o título de "um garantista na Lava Jato"?

Exatamente, garantista nesse sentido, não no sentido pejorativo. No sentido de que as garantias da Constituição são o maior dever de nós juízes.

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