Racionamento afetaria economia e qualidade de vida, dizem pesquisadores
Presidente da Câmara disse que país teria racionalização compulsória de energia, mas voltou atrás
Em um cenário classificado pelo Ministério de Minas e Energia (MME) como o "pior período em 90 anos de águas chegando aos reservatórios de hidrelétricas", o receio de que um racionamento de energia precise ser implementado para evitar uma crise geral de abastecimento toma as discussões do governo e da sociedade civil. Nas últimas semanas, a minuta de uma Medida Provisória (MP) segundo a qual a racionalização compulsória teria início no mês de julho chegou a circular no Palácio do Planalto, mas, de acordo com o titular do MME, Bento Albuquerque, não ganhou aval do presidente Jair Bolsonaro (sem partido).
Em entrevista ao SBT News e ao participar de audiência pública na Câmara dos Deputados na última 4ª feira (23.jun), Albuquerque disse que não existe em nenhuma hipótese a chance de o governo determinar o racionamento de energia para evitar um blecaute. O presidente da Casa, Arthur Lira (PP-AL), por sua vez, falou que o país teria "um período educativo aí, com racionamento, para não ter crise maior", mas depois voltou atrás. Para brasileiros com lembranças do ano de 2001, quando houve a chamada crise do apagão, um alívio. Já para os mais novos, possivelmente dúvidas sobre o que uma medida restritiva significaria na prática.
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Em entrevista ao SBT News, o professor Celio Bermann, do Instituto de Energia e Ambiente (IEE) da Universidade de São Paulo (USP), afirmou: "Qualquer tipo de restrição à disponibilidade energética leva necessariamente à redução da produção econômica, seja ela de qual setor for, e à redução da qualidade de vida da população". A energia, em suas palavras, "é um bem para a economia e para as famílias". Dessa forma, explica o professor, ao falar de racionamento nesse caso, "o que está se fazendo é reduzir a capacidade da economia, a produção econômica propriamente dita, e também da safisfação do bem-estar da população brasileira, em função da restrição do acesso à energia elétrica".
Ele relembra que a eletricidade está presente em inúmeros momentos no dia a dia, desde o ato de ligar eletrodomésticos até o funcionamento do comércio- incluindo farmácias-, armazenamento de vacinas em postos de saúde e iluminação urbana. "Todos esses chamados serviços energéticos, porque a gente não consome eletricidade, a gente consome o serviço energético que ela proporciona, por exemplo a refrigeração", completou.
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Um racionamento, afirma, "não é a racionalização do consumo energético, é a retirada da disponibilidade energética para todos os consumidores, sejam eles industriais, de serviço, do hospital ou o consumo domiciliar". Também em conversa com o SBT News, o doutor em engenharia hidráulica e professor da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) Antonio Carlos Zuffo acrescentou que, dentro de casa, em um racionamento, famílias acabam se vendo obrigadas a diminuir o uso de equipamentos de potência elétrica alta, como chuveiros e ferro de passar roupa, para não ter de arcar com um custo maior.
"Se você costuma ter que tomar um banho demorado, você vai ter que diminuir, porque isso já vai reduzindo a sua conta. Apagar a luz, se for essas lâmpadas de LED, não vai resultar em muita economia, porque elas gastam muito pouco", explicou. Ainda segundo ele, o impacto na economia viria "porque se eu aumento o valor da energia elétrica, aumenta o custo da produção".
Setor elétrico
Zuffo analisa que, entre 1936 e 1975, chovia menos no Brasil, de modo que as usinas hidrelétricas na bacia do Rio Paraná, onde hoje é constatada a escassez, trabalhavam com uma média menor de vazões. Depois, entre 1976 e 2011, as precipitações aumentaram no país e foi possível manter as usinas funcionando com uma média maior. Porém, segundo ele, o que se observa atualmente é um período similar ao primeiro e que deve durar pelas próximas duas ou três décadas.
"Pode ser que chova mais agora no final de ano, no ano que vem, que recupe um pouco, mas, na média de longo período, ela vai cair de 20 a 30%, e essa vai ser a realidade que a gente vai ter que se adaptar", projetou. Essa adaptação, diz o professor, passa por uma redução do consumo de energia, investimento em outras fontes de produção e também "a construção de grandes reservatórios para fazer a regularização de vazões, porque a maioria das usinas hidrelétrica que nós temos instaladas no país funciona a fio d'água". "A fio d'água significa que ela não armazena água para gerar, então o que passa, que entra de vazão, ela vai gerar", completou.
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O professor Celio, por sua vez, critica a forma como se dá a política energética nacional. Em suas palavras, "apesar da técnica que hoje o Brasil tem na gestão energética, ela não está se dando de forma racional e lógica e isso só pode ser entendido porque, por trás dessa gestão, está o interesse econômico, e não o interesse de satisfazer as necessidades da população brasileira e da economia brasileira". Outro problema, de acordo com ele, é que o "conjunto de usinas hidrelétricas está hoje envelhecido". "Então a dificuldade de se gerar energia elétrica por causa das hidrelétricas não é apenas pela falta de disponibilidade de água. É também porque turbinas e geradores, que operam há mais de 20 anos nessas usinas, 70% das usinas hidrelétricas hoje em operação no Brasil estão envelhecidas", citou.
Ele alerta ainda que a falta de chuvas está relacionada às queimadas na Amazônia: "Ao derrubar uma árvore, ao queimar a floresta, os chamados rios voadores, que é o quanto de umidade ela produz, não existe mais. E são esses rios voadores que normalmente vêm para abastecer nos reservatórios das usinas hidrelétricas".
O apagão?
O racionamento de energia vem, nas palavras de Zuffo, "quando não tem alternativa". Se ele não funcinar, alertam os professores, o país passa a sofrer com blecautes. "Numa situação dessa natureza, ele [o sistema elétrico] precisa desligar. Precisa desligar áreas, zonas, sistemas, substações, linhas de tensão e isso, para ser feito de uma forma adequada, é feito a partir das pontas do sistema, isto é, a periferia do sistema elétrico é a primeira a ser impactada pelo apagão, pelo desligamento", disse Celio.
De acordo com ele, "infelizmente quem está na ponta do sistema é a periferia urbana. São os pobres. Então são eles que serão atingidos, da forma como aconteceu recentemente no estado do Amapá". Procurado para falar ainda sobre se vem implementando alguma campanha de conscientização da população para a economia de água e energia, o MME disse que, desde dezembro do ano passado, fez inserções em TVs (664), rádio (44.226), aeroportos (1.001.920), elevadores (33.355.599), painéis (99.080), mobiliário urbano (2.067.957) e ônibus (108.675).