Lula, Haddad e as vezes em que presidentes, se não atrapalharam, não ajudaram ministros da Economia
No embate instalado em torno do déficit zero, os efeitos vão muito além do sobe e desce da Bolsa de Valores
Em plena semana de decisão do Copom só se fala em outra coisa. Um novo corte de 0,50 ponto percentual previsto, que de fato aconteceu, e a confirmação pelo Banco Central de que outros virão -- isso, assim mesmo, no plural -- só fizeram liberar as atenções da economia e da política do país, ainda mais, para o embate que, de fato, está no auge do interesse: a questão do déficit zero para 2024, núcleo duro da proposta de ajuste fiscal do ministro da Fazenda, Fernando Haddad.
Lula declarou em conversa com jornalistas, na 6ª feira (27.out) que tal déficit "não tem que ser zero" até porque não pretende, palavras do presidente, fazer cortes "que comprometam obras de interesse do país". Pronto. Estava instalada uma casca de banana carnuda no corredor que o ministro percorre e que resultaria, como aconteceu, no mínimo, em um escorregão da imagem construída por Fernando Haddad
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Prazos e menos prazos
De reação imediata, ainda naquela sexta-feira, a bolsa caiu fundo e o dólar mostrou os dentes para o real. Mas as consequências do ambiente da política vão muito além dos interesses da Faria Lima. Basta ter claro que, de um lado da conversa, Lula é o dono dos quase 60 milhões de votos que o levaram a assumir seu terceiro mandato como chefe do Executivo. Do outro, o ministro a quem foram confiadas a credibilidade e a expectativa por uma retomada na cena econômica que seja capaz de fazer o Brasil voltar a crescer -- com visão de longo prazo, atendimento social e interlocução internacional. Mas tem mais.
No panorama propriamente político, o nome de Fernando Haddad "timoneiro da recuperação econômica" que o governo espera se encaixa como uma luva no Plano B do Partido dos Trabalhadores para 2026. Nem mesmo Lula, que terá 81 anos até lá, sabe se irá se candidatar pelo partido. E Haddad tem dado uma mão e tanto nos entendimentos com a finança nacional -- a lembrar a proximidade até com o presidente do Banco Central, Roberto Campos Neto. Não são poucas as visões que atestam que Haddad é um dos principais articuladores do Lula 3, inclusive em suas incursões pelo Congresso. Desgastar a imagem do ministro tão cedo, num episódio em que uma boa troca de prosa com os congressistas não espalharia estilhaços e apenas tornaria visível o que já se comenta nos bastidores -- que a meta zero é inexequível -- não atrapalha apenas a vida de Haddad. O risco nesta seara pode ser muito maior.
Ainda no dia das declarações de Lula, uma fonte de Brasília disse, em conversa reservada com o SBT News, que o presidente "dificilmente teria feito aquilo sem estar entendido com Haddad". Análise também passível de contestação. "O problema não é o fato, é a sua manipulação", avalia o cientista político e conselheiro da Associação Brasileira de Imprensa (ABI), Laurindo Leal Filho, o Lalo.
"Entre inúmeros temas importantes destacados por Lula, a mídia resolveu explorar a questão do déficit fiscal. Há dois motivos para isso: explorar uma possível divergência no interior do governo e atender aos interesses do setor financeiro, conhecido como Faria Lima. Curioso é que, no governo anterior, o teto de gastos foi várias vezes ultrapassado com fins eleitoreiros e não houve essa repercussão. Agora, quando há necessidade de um déficit mínimo, se comparado a de outras grandes economias, para implementar políticas públicas que constam do programa do governo eleito, surge toda essa repercussão", completa Lalo.
Mas houve quem desse mais peso às turbulências de ocasião.
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ESQUECE A META. Em uma frase, Lula praticamente acabou com o trabalho de meses da equipe econômica e enterrou a meta fiscal de déficit zero em 2024. Segundo o presidente, "nós dificilmente chegaremos à meta zero, até porque eu não quero fazer cortes em investimentos e obras.
? Teco (@tecomedina) October 27, 2023
Primeiros ministros
Ao longo da história recente do Brasil, notadamente a partir da redemocratização, algumas situações exemplificam o "climão" entre presidentes da República e seus ministros. O médico Luiz Henrique Mandetta, da Saúde, contrariou o chefe ao se manifestar publicamente a favor do isolamento das pessoas, quando Bolsonaro apoiava apenas que idosos e pessoas em grupos de risco ficassem em casa, além de "receitar" cloroquina. Isso em plena pandemia de Covid-19. Mandetta terminou demitido em abril de 2020 -- quando a doença só fazia se alastrar.
Quando o recorte é eminentemente econômico, também não faltam exemplos de embates entre ministros e seus superiores na República. Confira abaixo alguns destes momentos resgatados a partir da redemocratização do país:
Sarney x Bresser
O governo de José Sarney (1985-1990) vinha de uma frustração nacional, com a derrocada do Plano Cruzado: a ideia, que propunha debelar uma inflação de 235% ao ano (1985) com congelamento de preços e outras medidas menos ortodoxas, rapidamente se transformou em desabastecimento, ágio e falta de apoio popular. Escalado para a Fazenda, Luiz Carlos Bresser-Pereira criou o plano Bresser, em 1987, com o objetivo de restabelecer o equilíbrio econômico. Mas a busca, pelo governo, de apoio político dos grupos mais conservadores do país para encaminhar o programa, resultou em ingerência política contraproducente. As medidas econômicas mal deram resultado, e Bresser deixou a Fazenda depois de oito meses no cargo.
Collor x Zélia
O Governo Collor (1990-1992) não exibiu propriamente crise(s) entre o presidente Fernando Collor e sua ministra econômica, Zélia Cardoso de Mello, de quem é primo. Mas o insucesso flagrante do Plano Collor custou caro à ministra. O ingrediente perverso do confisco da caderneta de poupança de milhões de brasileiros - e as explicações infindáveis sobre as medidas e os objetivos do programa - causou tal trauma à sociedade brasileira que a figura de Zélia não poderia ser poupada. Foi ministra entre março/90 e maio/91.
Itamar x FHC
Taí um exemplo raro de caso em que o presidente, ainda que não estivesse completamente satisfeito com o protagonismo de seu titular da Economia, ao menos não o lançou em terreno movediço. O sociólogo Fernando Henrique Cardoso assumiu a cabine de comando do Plano Real depois de vários programas ineficazes contra a inflação - que chegava aos 1.000% ao ano. O êxito do Real lhe atribuiu o estrelato. Itamar Franco, o presidente à época, era tido como de gênio difícil e algo folclórico, mas acompanhou solidário a trajetória que levaria FHC à presidência da República.
FHC x Malan
Dois arquitetos do Plano Real, Fernando Henrique e Pedro Malan seguiram juntos nos dois governos FHC (1995-2002). Malan chegou a ser cotado para se candidatar à presidência sucedendo ao próprio FHC, mas a performance de José Serra na pasta da Saúde - com o lançamento dos medicamentos genéricos - o cacifou para a disputa.
Lula x Dilma
O primeiro governo Lula teve à frente da Economia o médico Antonio Palocci, que comandou a transição dos anos FHC para o Lula I. Discreto, Palocci manteve-se na função de conduzir uma passagem suave entre os dois governos e assim o fez. Só deixou a pasta em 2006, após o escândalo da quebra do sigilo bancário do caseiro Francenildo Santos. Guido Mantega assumiu o cargo onde permaneceria até 2015. Simultâneamente, notabilizavam-se Dilma Roussef, então ministra-chefe da Casa Civil, e Fernando Haddad, da Educação.
Dilma x Mantega
Eleita presidente em 2010, Dilma Rousseff indicou Guido Mantega para continuar no cargo de Ministro da Fazenda durante seu governo. Ele adotou a chamada Nova Matriz Econômica, com cortes de impostos, redução da tarifa de energia e controle dos preços dos combustíveis. Os resultados são considerados controversos e seriam, de acordo com os críticos, causadores da crise econômica de 2014. Entre seus números, deixou uma das menores taxas de desemprego (5,0%) ao sair do governo. Entre os observadores responsáveis da vida política em Brasília, uma fonte que prefere se manter reservada disse ao SBT News que o erro de Dilma na economia foi querer " ser ela própria a ministra da Fazenda", e determinar os rumos da economia em detrimento das sinalizações dos seus ministros.
Temer x Meirelles
O nome da Economia no governo de Michel Temer (2016-2018) foi Henrique Meirelles. Ele colocou em prática medidas com foco em viabilizar as reformas estruturais, como a trabalhista e a da Previdência.
Bolsonaro x Guedes
Bolsonaro chegou à presidência e desde os primeiros dias de seu governo (2019-2022) disse que seu "Posto Ipiranga [em alusão ao personagem da publicidade que respondia à todas as perguntas] era o ministro da Economia, Paulo Guedes. Desinteressado do dia-a-dia econômico e desconhecedor-confesso das perguntas e respostas deste cenário, delegou a condução e a visibilidade da pauta econômica ao "superministro". Não que com isso não houvesse divergências entre os dois. Guedes foi diversas vezes desautorizado por Bolsonaro. O economista era defensor do enxugamento do número de ministérios - queria 15 - e o presidente queria ampliar (com a criação da Indústria e Comércio, por exemplo). Ao final, o governo Bolsonaro tinha 23 pastas; Guedes queria privatizar até a Petrobras, e Bolsonaro publicamente disse que o processo não iria sair; situação semelhante à da Caixa Econômica Federal. Por mais de uma vez, os políticos -e até economistas - deram como certa a demissão do chefão da economia bolsonarista, o que jamais ocorreu. De comum acordo, ambos assumiram explodir os gastos públicos inclusive com finalidades eleitorais, já que Bolsonaro tentou se reeleger em 2022.
O Mito Boitatá
"Nao é ser ministro da fazenda. No regime presidencialista brasileiro, o poder de um ministro não é um direito, mas uma concessão. O seu alcance está vinculado à vontade de quem recebeu os votos. Isso vale para Fernando Haddad, mas também para outros ministros importantes, como Rui Costa ou Flavio Dino. É ingenuidade supor que um presidente eleito com 60 milhões de votos se submeta a um assessor sem nenhum. Superministro é como boitatá. Não existe."
A análise incisiva é do jornalista Thomas Traumann, que tem mais de 30 anos de convivência com a vida política, partidária, econômica e presidencial de Brasília. É o tipo de experiência que confere ao profissional estofo para ser o autor do livro "O Pior Emprego do Mundo", onde lista as táticas de sobrevivência de 14 ministros da Fazenda em períodos recentes.
São estes executivos que decidem muito do que vai mexer no bolso de todos. Nos tempos de Zélia saiu deste cargo a definição de quanto cada brasileiro poderia sacar da própria poupança; em outros momentos a decisão sobre se o país decretaria ou não uma moratória; é um posto que concentra imensa dose de poder. Ainda mais em meio a uma economia como a brasileira, sabidamente complexa. E é justamente por isso que as armadilhas, intrigas e conspirações que cercam os mandatários da pasta são inevitáveis - e por vezes tóxicas. O número de atribuições do ministro é diretamente proporcional ao tamanho que a economia do país tem - ou que se espera que passe a ter.
" A sua função número 1 de Haddad é dizer 'não'. Saber negar é uma arte do exercício do poder. Existe um tom de 'não' para um colega ministro, outro para o empresário com interesses protecionistas e um terceiro para um senador. Todo 'não' gera um inimigo em potencial. Com a sua meta de deficit zero, Haddad falou 'não' para 38 ministros ao mesmo tempo. Não tinha [a proposta] como sobreviver. Como os boitatás. Não é fácil ser ministro da Fazenda." - Thomas Traumann, jornalista
Apertado pelos jornalistas, durante coletiva, sobre a eventual mudança da meta para o déficit do ano que vem, Fernando Haddad repetiu mais de uma vez " minha meta está estabelecida". Bem observando, "não"... ele não falou.
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