Economia

"Elitismo não é ser elite": especialistas comentam objeto de desejo do brasileiro

A busca desenfreada por ser "especial" passa mais pelo que se pode comprar do que pelo que se pode vivenciar

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Se fosse de comprar, não parava na prateleira. Vendia mais do que pão quente. Porque se tem uma coisa de que o brasileiro anda gostando - talvez mais do que nunca - de incluir como patrimônio, é ver a própria imagem associada à "elite" do que quer que seja. Status, fazer um bonito pro vizinho, tudo que permita um...

"Samba, na cara da inimiga vai Samba, desfila com as amiga vai Samba, na cara da inimiga vai Samba, desfila com as amiga" 

como bem já sapecou em nossos ouvidos JoJo Todynho.

Não deve ser à tôa o sucesso do funk modelo exportação - que bombou com mais de 17 milhões de views no Youtube pouco depois de lançado em 2018 - ou, melhor seria... padrão ostentação?

"Não existem mais pessoas modestas", diagnostica a presidente da Associação Internacional para Pesquisa em Psicologia Econômica (IAREP, na sigla em inglês), Vera Rita Mello Ferreira. Em tempos de redes sociais bombando, o espaço pra esse tipo de manifestação se cristalizou. E cresce sem parar. Claro que gosto não se discute, mas a influência direta e até explícita de padrões de comportamento encontrou veículo irresistível nas postagens nas redes. A repercussão incontrolável gera mais postagens e por aí vai.  

"A ideia de se ver como exposição de performance é a mais valorizada: a ideia da elite se dá pela distinção, é o corpo, o dinheiro, a ostentação", classifica o professor de comunicação da Puc-RJ e mestre em Antropologia Gabriel Neiva. É a roupa nova para o conceito "vale mais você ter do que você ser. É a diferença entre um Elon Musk e um Henry Ford", completa ele. 

"A casca é valorizada. O interior das pessoas não necessariamente. É tanta coisa comprada pra mostrar, pra exibir. É tanto tirox e botox que às vezes você olha e...é um susto!" - Vera Rita M. Ferreira

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Funk-se quem puder

Não é obrigatório gostar do funk. Nem não gostar. O fato é que a cantora Ludmilla, recentemente, deu demonstração concreta de integrar uma elite pensante que não pensa apenas em si. Disparou no Rio de Janeiro, dias atrás, uma campanha de ingressos gratuitos para o show da turnê Numanice: quem doasse sangue ao Hemorio, ganhava um ticket. A troca deu resultado e o próprio hemocentro postou nas redes sociais. Confira. 

hemorio

"A gente tem mais é que ajudar mesmo", disse a funkeira. "De preferência fazer o bem sem olhar a quem", arremata. Coisa rara de se ouvir hoje em dia, ainda mais em tempo de farinha-pouca-meu-pirão-primeiro, como diz o ditado. 

Ludmilla | Redes sociais 

Alto conceito

Ostentar ser da elite é o objeto de desejo de muita gente. Mas qual elite? Financeira, intelectual, social, artística, cidadã... Porque são muitos os recortes possíveis para uma ambição tão etérea - e, ao mesmo tempo, tão presente no dia a dia das pessoas. No dicionário, elite é 1) o que há de mais valorizado e de melhor qualidade em um grupo social e 2) na Sociologia, minoria que detém o prestígio e o domínio sobre o grupo social, via decisões na economia, política, cultura e comportamento.

Por certo muitas outras definições mais ou menos precisas podem ser observadas, mas comumente a imagem de uma casta "mais especial que as outras" vem acompanhada da noção indelével de posse de dinheiro, poder, aparência, riqueza. Menos lembradas mas igualmente presentes são as ideias ligadas a uma elite esportiva, intelectual, artística: a estas, quase sem exceção, é associado o valor pela discrição, pelo comportamento elegante e altruísta. Aqui o que é aparente fica em segundo plano.

"O Messi é da elite do futebol mundial, não apenas porque ganha muito mas porque é absolutamente notável. Ou o Buddy Guy está na elite do soul, da música em todos os tempos, está na elite da música. É aquele grupo mais qualificado, que tem mais recursos no âmbito social. Você pode pensar numa elite econômica, que tem mais dinheiro, elite política, que tem mais poder. Elite acadêmica. São muitos exemplos", classifica o Cientista Político da Fundação Getúlio Vargas, Cláudio Gonçalves Couto.    

Valor à vista

Não é de hoje que as estatísticas e institutos de pesquisas apontam que, no Brasil, menos de 1% da população concentra aproximadamente 80% do dinheiro dos brasileiros. Ou mais. Um caso: R$ 750 bilhões de reais estão nas mãos da indústria de Fundos de Investimentos. Turma que, sem sombra de dúvida, integra uma elite econômico-financeira de patrimônio invejável. O problema é que boa parte deste pessoal praticamente não paga impostos, entre outros privilégios. São donos de fundos de investimento que tem um único cotista e que, quanto mais tempo deixam o dinheiro rendendo, tem alíquota de imposto menor a ser aplicada. Claro que não é o único exemplo, mas à cerca deste, o próprio ministro da Fazenda, Fernando Haddad, disse com todas as letras: "Isso não é normal em lugar nenhum. Isso chama a atenção do mundo inteiro sobre o Brasil". Equivale a dizer que a posse material não tem lastro na conduta moral, com muita frequência. A reforma tributária tem esta situação no radar.

Cultura e comportamento

"Momento histórico com certas elites que é mais evidente do que tempos atrás. No Brasil, na pandemia, gente consumindo luxo com muita gente passando dificuldades. Tem muito mais bilionários hoje do que antes. Olha as Big Techs, há uma elite ali. A elite da Big Tech tem obsessão por criar bunkers, por não morrer e etc. Forma extrema de distinção" - Gabriel Neiva, antropólogo Puc-RJ

O professor aponta que a distinção mudou. O tema é tratado na obra "A Distinção", do sociólogo francês Pierre Bourdieu. 

A Distinção

A obra liga práticas culturais e classes sociais, evidenciando as relações de poder como categorias de dominação pelo capital cultural. "Violência simbólica que aparece na ação sutil de comer, vestir, cuidar do corpo, ouvir música ou até mesmo na ação de apreciar uma obra de arte". O professor lembra que, entre as famílias endinheiradas, até recentemente era prática comum buscar aulas de artes plásticas para os filhos com grandes artistas como Lygia Clark; aulas de piano com arranjadores dos grandes nomes da música. Formas bastante exclusivas de perpetuar a projeção dentro da sociedade. Uma aspiração que percorre a vida dos brasileiros já há muito tempo, em contraponto ao implacável registro da realidade.

O professor Mauro Alencar, Doutor em Teledramaturgia pela Universidade de São Paulo (USP), aponta que extrair as mazelas da sociedade, com a ajuda da arte, "é teatro, é Boal, é Chico de Assis, é Brecht, autores preocupados em trazer a realidade para o palco, a literatura. De outro lado, surgem as produções como as 'novelas rosa' mexicanas, coloridas, exuberantes, repletas de luxo. Ali está inscrito o desejo de ascensão, tão bem aceito nessa forma de arte pelo público brasileiro". O México, recorda Alencar, é um país que se ergueu sobre a dor, sobre o sentimento. Os Ricos Também Choram (1979), de Valentín Pim, é um marco desse gênero. 

"A beleza impera, a ascensão impera. Isso traz um alívio, uma possibilidade de sonhar com uma vida mais fácil, não tão áspera. É inegável que tem uma base de desejo, de ascensão... caso contrario não existiria a 25 de março, caso contrário não teríamos o desejo da periferia e do morro de trabalhar o ano todo pra se afogar em quatro dias de Carnaval. Nós precisamos de uma dose diária de ficção. Por isso a América inventou a telenovela. Ela se baseia na ascensão social. São as personagens baseadas em Cinderela, que sofrem, lutam e chegam lá " - Mauro Alencar, USP   

Mauro Alencar
Mauro Alencar, USP| Acervo pessoal

Elitismo não é elite

Se para alguns estarem na elite significa que outros têm que estar distanciados dos demais, que permaneçam em condição muito ruim, está claro que existe um sério problema de justiça aí. "A impunidade pesa muito. Muitos que têm muito dinheiro, acham que podem tudo: até comprar pessoas, julgamentos, não responderem pelos seus atos", denuncia a professora Vera Rita Mello Ferreira. O exemplo da hostilização ao ministro Alexandre de Moraes, do STF, num aeroporto na Itália, dias atrás, encontra definição na análise do desejo por ser da elite. 

" É uma presunção por se julgarem impunes, por se acharem mais importantes, por serem mais ricos. E aí o problema não é ser ou não da elite apenas. É elitismo. Não é apenas estar num estrato diferenciado da sociedade, por achar que tem mais importância que os outros, por acharem que tem mais direitos do que os outros, ou seja, privilégios. O elitismo acha que são pessoas que têm qualidades diferentes, pelo dinheiro, pela origem, pela cor da pele. Uma das consequências disso é a intolerância, que foi o que se viu no caso do ministro. Pessoas que acham que, por não aceitarem as decisões que o ministro tomou, têm o direito de agredí-lo. O elitismo é a ideologia corrompida daqueles que se acham parte da elite" - Cláudio Gonçalves Couto/USP 

Noções unidas

A professora Vera Rita gosta de mencionar bons exemplos: "Os bilionários que doam valores expressivos a quem precisa; aqueles que trabalham às vezes doando a própria vida para o bem de quem precisa". Um dos nomes que ela faz questão de mencionar é o do ex-diplomata brasileiro Sérgio Vieira de Mello. Ele ganhou notoriedade na virada dos anos 2000, quando liderou a missão da ONU no processo de independência do Timor-Leste, ocupado pela Indonésia até maio de 2002. Era cotado para substituir o então secretário-geral da ONU, Kofi Annan. Vieira de Mello morreu num atentado à bomba à sede da Organização das Nações Unidas em Bagdá, no Iraque, atribuído à organização terrorista Al-Qaeda. 

"Esta é a definição: a elite, ou quem é da elite, é aquele capaz de viver e pensar não apenas em si, em pensar nos outros. Talvez até viver pelos outros. É a elite da humanidade" - Vera Rita de Mello Ferreira  

Vieira de Mello
Sergio V. Mello, com o ex-sec. geral da ONU, Kofi Annan | UN

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