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Da CPI à morte de Marielle Franco: a história da milícia no Rio

Grupo criminoso formado por agentes de segurança segue fortalecido

No início dos anos 2000 era comum ouvir pelas ruas do Rio de Janeiro que a comunidade de Rio das Pedras, na zona oeste da cidade, era uma "favela tranquila". O lugar aparecia no noticiário não por crimes ou tiroteios, mas pelo baile funk do Castelo das Pedras, casa de shows que recebia até famosos aos fins de semana. A segurança, no entanto, era paga. Moradores e comerciantes locais eram obrigados a pagar taxas de "proteção" para um grupo de policiais e outros agentes de segurança do Estado. Era a milícia.

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Esses grupos oferecem proteção contra eles mesmos, já que quem não aceita pagar o valor proposto é ameaçado. É o que explica o sociólogo Jose Ignacio Cano, professor da Universidade Estadual do Rio de Janeiro, UERJ.

"Na milícia, o poder está com quem oferece o serviço, porque é um serviço obrigatório, coativo. E também temos muitas testemunhas e pessoas que disseram que quem não quis pagar teve, por exemplo, a loja roubada ou destruída, então no caso da milícia quem manda é o dono da milícia, que obriga você a pagar pela presença do grupo", destaca Ignacio Cano.

As taxas não são restritas somente à proteção. Há cobrança para uma infinidade de atividades econômicas que acontecem nas comunidades comandadas pelas milícias. Venda de água e gás. Serviço clandestino de TV a cabo e internet. Compra e venda de imóveis. Barracas de camelôs. Transporte alternativo. Tudo isso com uma taxa embutida, tanto para os moradores quanto para os comerciantes.

Com um discurso de "libertação do tráfico de drogas", o grande diferencial desses grupos é a participação de agentes do Estado. Policiais, bombeiros, agentes penitenciários e fuzileiros navais usando do treinamento que tiveram acesso e do poder obtido enquanto funcionários públicos para extorquir e lucrar.

Segundo André Rodrigues, cientista político e professor de Segurança Pública da Universidade Federal Fluminense (UFF), o que diferencia a milícia do tráfico é apenas o tipo de negócio que exploram e sua posição nas relações com o Estado.

"As milícias eram formadas por agentes e ex-agentes do Estado, enquanto o tráfico mantinha uma relação de suborno e confronto com o Estado. Tanto as milícias quanto o tráfico, entretanto, se baseiam em lógicas de corrupção estatal. As milícias pela filiação criminosa de policiais e bombeiros e o tráfico pelo pagamento de arregos e parcerias com agentes estatais na operação de rotas de tráfico de drogas e de armas", afirma Rodrigues.

Para o professor de Violência e Segurança Pública da UFF, o "poder de matar" dado pelo Estado para seus agentes passou a ser usado por eles, em uma dinâmica de "quem paga mais".

"[As milícias] São resultado da negociação privada do poder de matar que o Estado outorga a agentes de segurança pública. Quando o Estado não fiscaliza e controla adequadamente o uso da força por seus agentes, eles passam a vender este poder de matar para quem paga mais", destaca Rodrigues.

A milícia também conseguiu o que o tráfico de drogas jamais chegou perto: com a coação de moradores, os grupos passaram a eleger milicianos para cargos políticos no Executivo e Legislativo do Rio de Janeiro.

Vista como um mal menor até pelo então prefeito do Rio, César Maia, que afirmava que a milícia era um "problema muito menor que o tráfico", os grupos de paramilitares só passaram a ser investigados após o sequestro e tortura de uma equipe de reportagem do jornal 'O Dia', em maio de 2008, na Favela do Batan, em Realengo, zona oeste da cidade.

A comoção gerada pelo caso e a pressão da mídia fez com que deputados estaduais aprovassem a criação de uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) para investigar a ação de milícias em todo o estado do Rio de Janeiro. Quando foi proposta pelo deputado Marcelo Freixo (na época no PSOL), ainda em 2007, a CPI tinha sido engavetada. O parlamentar, que estava em seu primeiro mandato, apresentou o projeto após sua própria família ser atingida pela milícia: o irmão, Renato, foi morto por milicianos que faziam a segurança do prédio em que ele morava em Niterói, em 2006.

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Não se pode dizer que a CPI das Milícias "terminou em pizza". Cinco parlamentares, entre deputados e vereadores, foram indiciados por relação com milícias e por terem criado currais eleitorais nas comunidades em que atuavam. Eles tiveram seus mandatos cassados e foram presos. Entre eles estava Geiso Turques, o Geiso do Castelo, dono do Castelo das Pedras, citado no início desta reportagem.

O relatório final da CPI, instaurada em 19 de junho de 2008 e que durou cinco meses, pediu o indiciamento de 225 pessoas, entre políticos, policiais, agentes penitenciários, bombeiros e civis. Foi uma mudança para a sociedade civil e para o próprio Estado, que passou a ver a milícia como uma organização criminosa.

Entre as 58 propostas apresentadas pela comissão, várias sugerem ações para cortar a fonte de financiamento das milícias. O que não aconteceu. Apesar das prisões, os grupos de paramilitares continuaram ativos. E lucrando.

"O estado do Rio reagiu contra as milícias como se reage em qualquer lugar contra crime organizado, ou seja, através de investigações, prisões, e condenações. Essa estratégia é muito importante, mas não é suficiente quando você tem redes locais de extorsão. A única forma de acabar com a milícia é lançar mão de uma dupla estratégia: por um lado, você tem que desenvolver uma operação de recuperação do controle territorial com presença de agentes do Estado, no caso dos policiais, para evitar que a extorsão continue acontecendo. Em segundo lugar, você tem que asfixiar as atividades econômicas da milícia, que são muito lucrativas", diz Ignacio Cano.

A milícia de Rio das Pedras, considerada a segunda maior favela do Rio de Janeiro pelo Censo 2022, tinha ainda fortes ligações com um grupo de matadores de aluguel: o Escritório do Crime. Entre esses assassinos, muitos deles policiais, estava Ronnie Lessa, ex-PM do Batalhão de Operações Policiais Especiais (Bope), acusado de ser o autor dos disparos que mataram Marielle Franco e o motorista Anderson Gomes, em março de 2018.

Marielle (PSOL), uma vereadora em primeiro mandato que denunciava a violência policial, foi por muitos anos assessora de Marcelo Freixo na Comissão de Direitos Humanos da Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro (Alerj). 

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A jornalista e assessora de Marielle, Fernanda Chaves, também trabalhou com Freixo na Alerj e, inclusive, teve o nome registrado no relatório final da CPI das Milícias por reconhecimento. Ela estava no carro junto com a vereadora, no dia 14 de março de 2018, e foi a única sobrevivente do crime que vitimou Marielle e o motorista Anderson.

Ainda citando o relatório final da CPI das Milícias, dois nomes que surgiram durante as investigações para encontrar os mandantes do assassinato de Marielle aparecem por lá também: Cristiano Girão, ex-vereador do Rio, e Domingos Brazão, ex-deputado estadual do Rio de Janeiro. É mais um indício para se juntar às suspeitas de que a morte da vereadora pode estar relacionada à milícia carioca.

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