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Laurentino Gomes: "Dom Pedro I foi raio que cruzou céu de Portugal e Brasil"

Autor dos livros 1808, 1822 e 1889, jornalista e escritor conversou com o SBT sobre a Independência

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Em comemoração ao Bicentenário da Independência do Brasil, o SBT News entrevistou o jornalista e escritor paranaense Laurentino Gomes, conhecido pelos best-sellers 1808, 1822 e 1889, que popularizaram a história do Brasil. Sete vezes ganhador do Prêmio Jabuti, ele avaliou o processo de independência e defendeu uma segunda abolição no país, que vive até hoje, segundo ele, sob a herança do seu passado escravocrata. 

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O Brasil ainda está em processo de independência?
Essa questão da independência, é muito relativa. O Brasil de fato rompeu seus laços com Portugal, e a coisa mais simbólica foi o grito do Ipiranga, mas continuou uma guerra na Bahia até o dia 2 de julho de 1823, quando os portugueses foram expulsos. No primeiro reinado, Dom Pedro I era rei do Brasil, mas ele era também rei de Portugal, onde era chamado de Dom Pedro IV, e ele tinha interesses aqui e lá, então o Brasil e Portugal continuam vinculados por interesses da monarquia portuguesa continuada no Brasil. Não existe independência absoluta, existe um processo de construção nacional. É interessante observar, por exemplo, que em 1821, 1822, o José Bonifácio de Andrade e Silva, o patriarca da Independência, tinha um projeto de Brasil que não aconteceu. Ele queria acabar com o tráfico de escravos -- que era o primeiro passo para acabar com a escravidão --, queria a reforma agrária, distribuir terras, educar as pessoas, ele defendia a educação para todos, defendia o incentivo à indústria, ao comércio, e até a transferência da capital do Rio de Janeiro para o Planalto Central e esse projeto não aconteceu. Eu diria que ele é atual ainda, muitas coisas que o José Bonifácio desejava para o Brasil independente, 200 anos atrás, continuam na nossa pauta hoje. Por isso que é um país em construção ainda, a independência se constrói ao longo do tempo.

Por que o projeto de José Bonifácio não teve continuidade?
Porque tinha interesses poderosos em jogo. É preciso lembrar que o Brasil, na época da independência, era o maior território escravista do hemisfério ocidental. Ao longo de 350 anos, o Brasil trouxe da África quase 5 milhões de homens e mulheres escravizados. Todos os ciclos econômicos do Brasil, do Pau Brasil, passando pelo açúcar, ouro, diamante, café, tabaco, algodão... tudo foi construído por mão de obra escravizada, e essa era o interesse, essa era a riqueza, como se constitui a riqueza no Brasil

A aristocracia rural escravista dos senhores de engenho, dos barões do café, não queria a abolição da escravidão e muito menos o fim do tráfico negreiro, e isso explica porque o Brasil não conseguiu se reformar naquela época. Nosso grande historiador Sérgio Buarque de Hollanda fala do sentimento de medo que funcionou como uma amálgama, um orientador do processo de independência. O primeiro medo era que o Brasil mergulhasse numa guerra civil republicana, como estava acontecendo com a América espanhola. Havia o medo de que os caudilhos regionais iam guerrear entre si, e o Brasil poderia se fragmentar em dois, três, quatro países como aconteceu com a América espanhola. Esse era o primeiro medo: que o Brasil se fragmentasse, não ficasse unido.

O segundo medo, que era maior que o primeiro, é que, como não tinha forças armadas organizadas na época, esses chefes regionais, para lutar entre si, teriam que armar seus escravos, e os escravos armados, imbuídos das ideias de liberdade que chegavam da Europa, poderiam reivindicar a sua própria liberdade. Foi exatamente o que aconteceu no Haiti, em 1791, em 1792. No calor da Revolução Francesa, os escravos pegaram em armas e trucidaram os brancos. Havia um medo do haitismo no Brasil. Diante desse cenário em que todo mundo tinha alguma coisa a perder, a elite brasileira optou por um caminho conservador: 'Vamos romper os laços com Portugal, mas a gente mantém o herdeiro da coroa de Portugal no trono, o Brasil não vira uma República, continua monarquia por mais 67 anos e não mexe em nada: não acaba com tráfico negreiro, não acaba com escravidão, não faz reforma agrária, não alfabetiza as pessoas'. Estima-se que, naquela época, 99% dos brasileiros fossem analfabetos, e assim continuou. Quando acabou a monarquia em 1889, eram 90% [os analfabetos]. Quando eu nasci, em 1956, 50% eram analfabetos. Como se constrói um país assim? Por isso é um país que tem grandes dificuldades de se transformar, em função da dívida histórica, dos passivos que nós acumulamos do passado.

Foram mais de 300 anos de escravidão. Que herança isso traz para os negros e para os brancos? Para os negros, o Brasil ainda vive sob essa herança?
Infelizmente sim. A escravidão não é um assunto apenas de livro de História, é uma realidade presente no Brasil de hoje e acho que vai continuar a nos assombrar no futuro. Os grandes abolicionistas do século 19, José do Patrocínio, Luís Gama, André Rebouças, Joaquim Nabuco -- três negros e um branco. Eles diziam que não bastava fazer a Lei Áurea, de 13 de maio de 1888, não bastava parar de comprar e vender gente como mercadoria, como o Brasil já tinha feito desde a época da chegada de Cabral à Bahia -- a escravidão primeiro foi indígena, depois foi negra e africana --, era preciso também incorporar essa população e os seus descendentes, os ex-escravos e seus descendentes, na sociedade cidadã brasileira, na sociedade produtiva. Como? Dando terra, trabalho, educação, moradia, saúde, condições para que essa população prosperasse e se realizasse plenamente, como brasileiros, como seres humanos, isso não aconteceu. Hoje, neste início de século 21, o nosso grande problema é a desigualdade social. Infelizmente a pobreza assombra o Brasil, e ela tem cor, e aí que está o problema, porque existem muitos pobres brancos no Brasil. Retirantes que vieram do Nordeste fugindo da seca, tem ribeirinhos, tem indígenas, tem camponeses sem terra, mas, estatisticamente, se você for medir, a imensa maioria dos pobres no Brasil é de negros e descendentes de escravos africanos, mestiços, isso é uma herança da escravidão. Por isso temos que ficar muito atentos, estudar História, para entender como a gente chegou até aqui, as dificuldades, o que o Brasil deveria ter feito no passado e não conseguiu fazer e que ainda nos desafia hoje. Eu acho que essa segunda abolição continua sendo um desafio para nós que estamos vivos agora. Não aconteceu no século 19, mas tem que acontecer agora: acabar com o racismo, a intolerância. Nós precisamos nos tratar dignamente, com respeito. Uma pessoa não pode ser discriminada em função da cor da pele, isso é indigno do Brasil dos nossos sonhos. e são desafios que continuam presentes na realidade de hoje

A abolição foi um projeto preparado, arquitetado? 
O projeto de abolição no Brasil foi bastante improvisado. O Brasil resistiu até onde pôde para acabar com o tráfico negreiro. Em 1850, com a Lei Eusébio de Queirós. O último país da América a fazer isso e só fez sob a ameaça e a mira dos canhões da marinha britânica.

Em 1850, houve um episódio curioso, que o Brasil, depois de ter assinado um tratado com a Inglaterra e aprovado uma lei no Parlamento, em 1831, declarando que o tráfico de escravos tinha acabado, continuou importando escravos ilegalmente. Nunca entraram tantos africanos escravizados no Brasil quanto nessas duas décadas seguintes, num período tão curto de tempo. Irritado com essa situação, o governo britânico ordenou que um cruzador da marinha de guerra britânica invadisse águas brasileiras em Paranaguá, no litoral do Paraná, onde trocou tiros com uma fortaleza, na Ilha do Mel, suspeita de proteger o tráfico negreiro naquela região. Isso foi uma humilhação para o Império Brasileiro, de Dom Pedro II, Império ambicioso, que tinha que mostrar uma dignidade perante os seus congêneres europeus. Foi uma humilhação, um navio de guerra britânica invadir águas territoriais brasileiras por causa do tráfico de escravos. Somente aí o Brasil fez a Lei Eusébio de Queirós, mas foi sob intensa pressão internacional. Depois disso, durante 20 anos, a coisa ficou silenciosa. 

No final da guerra do Paraguai, em 1870, nasce o movimento abolicionista, que foi a primeira grande campanha de rua, popular de rua, na história do Brasil. Milhares de pessoas iam para os comícios, para os saraus literários dos abolicionistas, mas os fazendeiros queriam ser indenizados, porque consideravam que os escravos eram um ativo econômico, uma mercadoria, e isso não aconteceu. Então ficou uma coisa curiosa, o Brasil fez a Lei Áurea, não indenizou os fazendeiros, e isso fez com que eles aderissem à campanha republicana. É isso que explica a queda da monarquia no dia 15 de novembro de 1889. Os fazendeiros se sentiram traídos e aderiram à República. Há um processo de traição em relação a Dom Pedro II e à princesa Isabel, e por outro lado, o Brasil abandonou a sua grande África brasileira à própria sorte. Ou seja, ficou um projeto no meio do caminho. Eu não diria que a gente deva desmerecer a princesa Isabel, os abolicionistas. Eles fizeram coisas grandiosas para aquela época. O sonho era grande e merece ser comemorado hoje, mas a obra ficou pela metade, ela não foi concluída.

Por décadas, brancos e negros mantiveram relações de natureza escravista. De que forma isso está no nosso DNA? Essa herança explica por que o branco sempre quer mais privilégios?
Essa herança da escravidão obviamente é cruel com a população negra, mas também não está à altura do Brasil sonhado pela população branca, porque nós mantemos hoje relações escravistas. O trabalho no Brasil, durante 350 anos, até o final do século 19, foi sinônimo de escravidão. Quem trabalhava era o negro africano ou seu descendente. Havia, digamos assim, uma casta que se considerava superior, morava na casa grande, explorava o trabalho de milhões de pessoas, que aí sim botavam a mão na massa e trabalhavam como se fossem animais, carregando mercadorias, carregando gente, puxando carroça na rua tanto quanto hoje. Você anda aqui por São Paulo e vê muitas pessoas, afrodescendentes, puxando carroça, morando na rua, fazendo trabalho pesado. Mas eu diria que essas relações escravistas continuam. Primeiro que nós temos dois Brasis. Um Brasil branco, que tem privilégios, ocupa os melhores empregos, ocupa as melhores funções. Você vai hoje ao Supremo Tribunal Federal e vê, quantos ministros negros têm lá depois da aposentadoria do Joaquim Barbosa? Nenhum. Quantos governadores de estado? Nenhum. Quantos deputados, senadores? Pouquíssimos. Quantos presidentes de empresas, diretores, médicos, dentistas, advogados, pilotos de avião, professores universitários, escritores, jornalistas? Tem, mas são poucos. Se você tiver um olhar atento e olhar as metrópoles brasileiras, você consegue ver um Brasil segregado. Você vai ao Rio de Janeiro e observa: quem mora em Copacabana? Leblon? Ipanema? Ou nos Jardins aqui em São Paulo? Quem mora nessas periferias insalubres, abandonadas pelo Estado, às vezes dominadas pelo crime organizado? Majoritariamente a população descendente de africanos escravizados. É um Brasil segregado, e eu não diria que esse é um Brasil dos sonhos da população branca, ele está muito aquém do que nós poderíamos ter sido ou do que nós gostaríamos de ser, mas essas relações ainda continuam escravistas, na forma de trabalho indigno, com os salários pífios. Eu diria até que o quartinho de empregada ainda é um eco da senzala, é escondido, em condições muito precárias, pessoas que não têm jornadas de trabalho definidas, às vezes, a família que trouxe a garota do interior para criar, mas, no fundo, é uma empregada que trabalha sem vínculo empregatício para o resto da vida. As empregadas domésticas só muito recentemente tiveram direito de ter emprego formal, com carteira assinada. Até pouco tempo atrás as relações eram de natureza escravistas. É duro falar isso, mas infelizmente são heranças que nós trouxemos do passado.

É o país que Dona Leopoldina sonhou?
Não é o país que Dona Leopoldina sonhou, nem o Dom Pedro I, nem o Dom Pedro II, nem José Bonifácio e os nossos grandes abolicionistas. Eles sonhavam com um Brasil melhor. E eles tinham realmente boa intenção. Se você pegar o Dom Pedro II, ele era um homem culto, educado, um grande brasileiro, mas ele governou um império escravista durante 50 anos. Ele governou um país dominado pela pobreza e pelo analfabetismo, e não conseguiu fazer mais que isso. O Dom Pedro II era refém de um país escravista. É muito interessante, porque eu não tenho dúvida que, Dom Pedro II, se pudesse fazer tudo sozinho, por conta própria, talvez ele tivesse acabado com a escravidão. Esse era o desejo dele. O problema era que a monarquia brasileira era um gigante com pés de barro. Ele dependia do apoio financeiro e político e armado dos barões do café, dos senhores de engenho, dos pecuaristas. Eram esses que apoiavam o trono brasileiro, participavam da política nos dois grandes partidos imperiais -- o partido liberal e o partido conservador -- e em troca, recebiam títulos de nobreza como barão do café, visconde, conde, duque, fidalgo, coronel da guarda nacional, recebiam privilégios nos negócios públicos e tinham acesso à riqueza, aos privilégios que aquele Brasil, relativamente simplório que era o Brasil do século 19, conferia. Quando o trono brasileiro, pressionado externamente pela Inglaterra e internamente pela campanha abolicionista, decidiu fazer a Lei Áurea, o gigante desabou, o pé de barro quebrou e a monarquia desaba. A monarquia no Brasil, ela perde o seu alicerce, que é a escravidão, essas relações agrárias escravistas, e aí ela desaba, desmonta. Mas, curiosamente, essa mesma aristocracia agrária que mandava no Império logo começa a mandar na República, com a chamada política do Café com Leite, também conhecida como a política dos fazendeiros, que vai até a revolução de 1930. E se prestarmos bem atenção, eu diria que está por aí ainda. Essas oligarquias regionais que dominam, conseguem fazer aliança com a esquerda e com a direita, e continuam mandando no Brasil. É por isso que a história não é só passado, ela tem uma continuidade no presente que continua no futuro. Então tem uma história do futuro que está sendo construída o tempo todo.

A corrupção de hoje já era presente naquela época? 
Eu diria que essas relações promíscuas entre o público e o privado vêm desde a época da colônia. Governadores gerais, nobres franceses que aqui vieram, se envolveram em 'maracutaias', enriqueceram ilicitamente. O governador da província de Minas Gerais se envolveu em contrabando de diamantes e chegou em Portugal muito mais rico do que os seus vencimentos permitiam, a ponto do Rei de Portugal ficar com ciúmes e se recusar a recebê-lo. Depois o perdoou e o nomeou vice-rei da Índia. Quando o Dom João chegou ao Brasil, em 1808, ele ganhou de presente a melhor casa do Rio de Janeiro, o Palácio São Cristóvão, onde funcionava o Museu Nacional. Quem era o dono? Um grande traficante de escravos, Elias Lopes, que deu de presente a sua casa a Dom João em troca de benefícios, título de nobreza, privilégios, e foi um dos homens que mais enriqueceram. Muita gente apoiou a corte brasileira, apoiou o primeiro, segundo reinado, e em troca recebeu benefícios e privilégios nos negócios públicos. Por isso, hoje quando você observa em Brasília esse toma lá dá cá, ele não é tão novo quanto se imagina, ele já estava presente na história brasileira. E isso também continua a nos desafiar. A corrupção é um sério problema no Brasil, porque a corrupção não beneficia os pobres, nunca. Ela beneficia quem já tem privilégios. Envolve negócios escusos, por baixo do pano, atropelando as leis, os regulamentos, em benefício de quem já tem riqueza e privilégio. Então a corrupção também é um desafio se a gente quiser corrigir as injustiças e resolver a desigualdade social no Brasil, e deveria estar na agenda política de todos os candidatos, de todos os partidos, e eu lamento muito que nesta campanha eleitoral em especial, ela esteja sendo jogada em segundo plano por todos os principais candidatos, porque têm telhado de vidro, devem explicações ao povo brasileiro, fizeram coisas que não deviam fazer. Mas a corrupção, o combate à corrupção, deveria estar na agenda, e não está, infelizmente.

Quem era Dom Pedro I? 
Dom Pedro I foi um meteoro, um raio que cruzou o céu de Portugal e do Brasil e transformou tudo pela frente. Ele morreu muito cedo, com 35 anos incompletos, deixando um filho no trono brasileiro, que depois ele assumiria, Dom Pedro II, e uma filha no trono português, a Dona Maria II, que governou Portugal por muito tempo. Ele fez o grito do Ipiranga, governou o Brasil em situações muito precárias, durante 9 anos, até 1831. Renunciou ao trono, voltou a Portugal, enfrentou uma guerra contra o irmão, Dom Miguel, que havia usurpado o trono. Ele tinha toda a chance de perder a guerra, deu a volta por cima, ganhou a guerra, resistiu a dois anos de cerco na cidade de Porto. Ou seja, é um personagem extraordinário, mas o que me encanta no Dom Pedro I é o ser humano, é menos o mito de pedra e bronze que hoje a gente vê em praça pública. É um ser humano que no fundo é muito frágil, tinha crises periódicas de epilepsia, desabava em público, ficava completamente inerte. Ele se envolveu com amigos de reputação muito duvidosa, como o Chalaça, no Rio de Janeiro, fabricava cachaça de forma clandestina, marcava gados que desciam de Minas Gerais com selo da Fazenda Real de Santa Cruz e vendia por um preço maior no Rio de Janeiro. Ele era um bom pai, um pai muito carinhoso -- a troca de cartas com Dom Pedro II é emocionante, muito tocante. Ao mesmo tempo, ele teve inúmeros casos extraconjugais. Num único ano, ele teve três filhos, obviamente com mulheres diferentes, com a Leopoldina, com a Marquesa de Santos e com a irmã da Marquesa de Santos, a Baronesa de Sorocaba. O último caso conhecido é com uma freira do convento da Esperança, nos Açores. Ele teria tido mais de uma dezena, dezenas de filhos ilegítimos. Ele tinha uma índole muito autoritária, e foi por isso que dissolveu a constituinte de 1822/23, porque começou a brigar com os constituintes que não obedeciam as ordens dele, mas, ao mesmo tempo, outorgou em Brasil e Portugal uma constituição surpreendentemente liberal, que é a Constituição de 1824. Isso que é interessante, essa contradição. Ele gostava de andar a cavalo, quebrou várias costelas andando de cavalo. No grito do Ipiranga, ele não estava com aquela vestimenta de príncipe europeu, ele estava com dor de barriga, montando numa mula. Tem um depoimento celebre do coronel Marcondes, que era chefe da guarda de honra. O coronel Marcondes conta que, exatamente na hora do grito do Ipiranga, o Dom Pedro I ia para o matinho para prover-se. É a expressão que ele usa, é um eufemismo. Ele estava com dor de barriga. Tudo isso me encanta porque aí eu vejo o ser humano, com suas contradições e também suas fraquezas, agindo sob uma pressão poderosa da história, em um momento muito decisivo de Portugal e do Brasil. Por isso que eu gosto de jogar luz no ser humano e não apenas ficar no fenômeno, que as vezes é muito épico, mais ufanista do que realmente foi.

Ele era muito trabalhador?
Ele trabalhava muito, dava incertas na alfândega do Rio de Janeiro e no comércio. As pessoas vendiam tecido com um metro pré-definido e uma 'maracutaia' muito comum da época era usar um metro de 90 centímetros, por exemplo. Ele ia lá, levava o metro oficial, media e, se a pessoa estava usando o metro falso, mandava prender. 

Mas é uma falsa moral?
É muito brasileiro. Pedro, o brasileiro. É interessante, porque ele tem um pé muito forte no Brasil, e o que eu acho mais curioso é que hoje ele continua dividido entre Portugal e Brasil. O coração está em Porto, numa igreja do Porto, e os restos mortais estão aqui no mausoléu do Ipiranga. Ele continua dividido entre os dois países: português de um lado e brasileiro de outro

Como você contaria a história do Brasil de hoje?
Se você observar o Brasil do ponto de vista do noticiário do dia, das discussão de redes sociais, dos escândalos que diariamente nós vemos em todas as áreas, os crimes, o problema da economia que não vai para frente, as divergências políticas, a corrução que continua endêmica, há muita razão para desânimo. Mas, se observarmos do ponto de vista histórico, talvez hoje estejamos vivendo um momento tão decisivo, tão importante, quanto foi o de 1808 com a chegada da corte, ou 1822 com a Independência. Porque o Brasil está vivendo um período inédito na sua história, que são quase 40 anos de democracia. É pouco comparado com os Estados Unidos, que têm quase dois séculos e meio. Mas nunca houve um período tão grande em que todos os brasileiros foram chamados a participar da construção do futuro. Como? Depositando seu voto na urna, fazendo escolha, participando politicamente das discussões, fazendo isso com suas famílias, nas suas empresas, esse é um Brasil novo que está sendo construído em silêncio e, às vezes, não aparece no noticiário do dia a dia. Eu sou otimista, eu acho que, no longo prazo, os frutos da sementes que estamos plantando agora vão aparecer. Existe uma juventude que está muito preocupada com a questão do racismo, da desigualdade social, da pobreza, da exclusão, tem organizações não governamentais, perfis em redes sociais, blogueiros, youtubers, gente que está discutindo e transformando o Brasil por dentro. É como se fosse um processo de gestação, um Brasil novo que que está sendo gestado dentro do útero da sociedade brasileira e uma hora esse Brasil talvez vá nos surpreender. Eu estou com 66 anos, e eu não sei se eu vou ver o Brasil dos meus sonhos, não sei se os meus filhos vão ver, porque a gente tem que calibrar também essas expectativas. Os passivos são tão grandes e tão antigos que vai demorar para esse Brasil se realizar. Mas quando eu olho de onde nós viemos, como é que nós estamos hoje, com um Brasil urbanizado, um Brasil com liberdade de expressão, em que existe participação política de diferentes maneiras, eu tenho um certo otimismo. Eu acho que o Brasil vai acontecer. 

O grande perigo é cairmos no pessimismo e no discurso cínico que diz que o Brasil não tem jeito. 'O Brasil é assim mesmo, não adianta sonhar, lutar'. Não, isso é fazer o discurso de quem sempre usufruiu desse Brasil que não dava certo. Nós temos que continuar sonhando, tendo esperança, porque é isso que nos mantêm vivos, é isso que nos faz seres humanos, é sonhar com um Brasil melhor, mesmo olhando pro passado e vendo que as dificuldades foram grandes, e as injustiças foram enormes.

O Brasil merece o nosso sonho.

A correção de tudo isso está em nossas mãos, nós temos como fazer?
Qual é o primeiro passo? Estudar, refletir, ler livro de História, porque é disso que surge pessoas mais habilitadas a tomar boas decisões em relação ao futuro, aquilo que nós chamamos de cidadania. Um eleitor consciente, capaz de, ao depositar o voto na urna, saber exatamente qual foi a jornada que nós percorremos até aqui, quais os desafios que não foram resolvidos no passado e que nós podemos resolver agora fazendo boas escolhas, que enfrentem essa situação. É o que chamamos de consciência crítica. Está nas nossas mãos, sim, construir esse Brasil, porque no passado você podia dizer 'o imperador resolve, o general resolve'. Hoje não, hoje não podemos dizer. Se você quer ter um Congresso ou um governo menos corrupto, não vote em político corrupto. Se você não quer ter a continuidade de um discurso racista, não vote em político racista. São escolhas que estão nas nossas mãos, mas têm que ser feita de forma consciente e corajosa.

*Com colaboração de Daiara Coelho e Giovanna Colossi 

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