Brasil

Guerra divide em grupos internos tanto petistas quanto bolsonaristas

No governo e na oposição, há divergência sobre o conflito na Ucrânia

Ao contrário dos governos das principais economias do mundo, que se posicionaram veementemente contra a invasão russa à Ucrânia, o Executivo federal brasileiro apresentou posicionamentos conflitantes entre si sobre o evento. E dentro da oposição ao governo Jair Bolsonaro, o mesmo cenário é observado. Se por um lado, o chefe do Executivo disse ser solidário aos russos e afirmou que o "equilíbrio é a posição mais sensata", por outro, o país votou a favor de resoluções que condenam a invasão, na ONU. Já na oposição, houve manifesto de presidenciáveis condenando o início da guerra pelos russos, mas também nota do PT culpando os Estados Unidos pela crise, que depois foi apagada, e o Partido da Causa Operária (PCO) - que apoia Luiz Inácio Lula da Silva na corrida presidencial - organizando atos a favor da Rússia e chamando a guerra na Ucrânia de "ação defensiva" russa.

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Para o doutor em ciência política Paulo Roberto Leal, professor da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), as particularidades do conflito e afinidades históricas com um lado ou outro não permitem que tanto governo quanto oposição firmem uma posição clara de apoio ou repúdio a algum dos dois países em guerra. De fato, diz ele, ambos "não demonstraram nas suas bases um grande grau de unidade em relação a esse tema". "Houve na esquerda quem apontasse um prejuízo ao direito internacional com a invasão não autorizada a um país soberano, do mesmo modo que houve quem relativizasse em função das questões históricas da região do Donbass ser historicamente e etnicamente russa", completou.

Dessa forma, analisa o professor, na esquerda e na direita existe uma divisão sobre a guerra. "Uma parcela da direita costuma ter uma posição antioriente, especialmente antirrussia, mas ao mesmo tempo, o Putin é um conservador, é alguem que advoga um modelo de sociedade não muito diferente daquele que é desejado por parcelas da extrema-direita". Ainda de acordo com Leal, no caso de Bolsonaro, "a agenda dele na Rússia, alguns poucos dias antes do início da operação russa na Ucrânia, trouxe ainda mais complicações". Em suas palavras, "há ali um indicativo de proximidade do governo Bolsonaro com o governo Putin".

O doutor em ciência política Alexsandro Eugênio Pereira, professor da Universidade Federal do Paraná (UFPR), por sua vez, pondera que "a tendência da oposição foi se manifestar contrária à invasão da Rússia na Ucrânia". "Ao analisar a nota que foi publicada pelos senadores do PT e depois retirada, é possível notar que ela condena o uso da força pela Rússia e defende a necessidade do diálogo." Tal avaliação, entretanto, não se vê nas próprias redes sociais ou nos grupos internos de apoiadores dos petistas. A invasão é quase sempre relativizada com argumentos da agressividade dos Estados Unidos e da Otan (Organização do Tratado do Atlântico Norte).

Pereira concorda com Leal, entretanto, que não houve clareza no posicionamento do governo Bolsonaro sobre o tema e o motivo de isso ter acontecido: "do ponto de vista estratégico, não é possível sustentar uma defesa de Putin na política internacional, pois isso comprometeria os interesses do Brasil perante outros parceiros internacionais - o que explica o predomínio do Itamaraty nas posições assumidas na ONU. Porém, há uma aproximação de Bolsonaro em relação a Putin e [o presidente da Hungria, Viktor] Orbán pela pauta conservadora defendida pelos três, o que explica certa confusão no que se refere à posição brasileira sobre a guerra na Ucrânia, sem uma condenação mais explícita à Rússia por parte do presidente".

Impacto da guerra na campanha eleitoral

Ambos os professores avaliam que a guerra na Ucrânia é usada por campanhas eleitorais, no Brasil, como garantia de capital político. De acordo com Paulo Roberto Leal, da oposição vem, por exemplo, uma insistência "na inadequação da visita do presidente Bolsonaro ao Putin alguns poucos dias antes da invasão russa". Ele relembra ainda que naquela momento, houve uma tentativa de Bolsonaro e apoiadores capitalizarem "como se tivesse tido o presidente algum papel naquilo que parecia ser uma desistência de uma ação armada russa que, depois, nem se consumou".

Também nas palavras do professor, "o tema entra nas campanha obviamente porque é de interesse da opinião pública e certamente gerará condições de que cada candidatura busque enquadramentos estratégicos dos episódios que estão acontecendo lá no leste europeu para criarem obstáculos para os adversários e criarem narrativas que facilitem a si mesmos".

Já segundo Alexsandro Eugênio Pereira, "a guerra da Rússia contra a Ucrânia tem implicações nas campanhas eleitorais dos principais candidatos à presidência, em particular, Lula e Bolsonaro, que se manifestaram sobre a guerra". Ele acrescenta que "nas campanhas eleitorais, os candidatos devem explorar a guerra na Ucrânia para discutir assuntos de política externa, considerando as críticas formuladas à atual gestão nesse tema específico". Entre essas críticas, está também a sobre o fato de o presidente ter dito que o Brasil terá posicionamento neutro em relação ao conflito.

No debate da campanha deve entrar questões orçamentárias da Defesa e unidade de comando dos militares. "Essa relação mais próxima com os militares foi construída pelo presidente Bolsonaro e não é uma estratégia dos demais candidatos", afirmou o professor da UFPR. Ainda segundo ele, o chefe do Executivo deve escolher seu vice, por exemplo, "com base em fatores domésticos, tais como as avaliações do seu partido e dos partidos aliados". "A decisão de Bolsonaro deve considerar esses fatores: se compensa manter a proximidade com setores das Forças Armadas e convidar Braga Netto. Ou se seria o caso de convidar uma mulher para compor a chapa ou, ainda, um nome indicado pelos partidos aliados. E será uma decisão que não terá relação com as circunstâncias geradas pela guerra na Ucrânia".

Refletindo sobre a questão, o professor da UFJF pontuou que "todas as considerações sobre a possibilidade neste momento que parece a mais plausível de [o ministro da Defesa] Braga Netto ser vice [de Bolsonaro] e, portanto, não o Mourão derivam de variáveis internas, e nada relativo a episódios que sequer se sabia que existiriam com certeza, há alguns meses". Políticos ouvidos pelo SBT News, sendo um do PT e outro do PL, disseram não haver qualquer movimento interno por uma apoximação maior com os militares para as eleições, por causa da guerra no leste europeu. A tentativa é manter Lula distante de conversas diretas com generais até uma eventual vitória nas urnas - isso não significa que o diálogo seja aberto por interlocutores, como o ex-ministro Celso Amorim.

Legado de Bolsonaro nas relações internacionais

A ida do presidente Jair Bolsonaro (PL) à Rússia em meio à crise do país com a Ucrânia e a Otan, e seu posicionamento após o início da guerra se somam a uma série de atitudes polêmicas do atual governo brasileiro no âmbito das relações internacionais. Dentre elas, várias que, segundo pesquisadores da área e doutores em ciência política, têm como consequência um eventual legado de isolamento do Brasil no cenário mundial e perda de confiança por parte de diversos países em relação ao sul-americano.

De acordo com o professor Eduardo Svartman, do departamento de Ciência Política da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), no que diz respeito à política externa e relações internacionais, o governo Bolsonaro se divide em dois momentos, nos quais a orientação geral é parecida, mas sua intensidade é muito diferente. São eles as administrações dos embaixadores Ernesto Araújo e Carlos França no Itamaraty.

Dessa forma, explica, na gestão do Executivo federal iniciada em 2019, "se aprofundou bastante" um esvaziamento de organismos de integração e de concertação política na América Latina, como o Mercosul e a Unasul; o Brasil se envolveu em atritos com a China - principal parceiro comercial do país desde 2009 - que levaram a nação asiática a substituir uma postura de engajamento e perspectiva de investimento no território brasileiro por outra de cautela em relação a este; surgiu uma visão muito negativa do Brasil em vários segmentos internacionais, devido a inflexão do governo em agendas, como a de costumes, meio ambiente e controle da pandemia; e o país produziu um alinhamento "muito forte" com o ex-presidente americano Donald Trump, cujas consequências incluem "um relativo isolamento em relação à União Europeia e em relação aos próprios Estados Unidos, diante da não reeleição de Trump".

Ainda segundo Svartman, em "várias circunstâncias" antes de Bolsonaro chegar à Presidência, o Brasil já havia se alinhado com os EUA, mas, no governo atual, foi a primeira vez em que a nação sul-americana se alinhou com o presidente americano da ocasião (Trump) e os grupos de direitas americanos representados por ele, e não com o país em si. O professor Pedro Ribeiro, do Instituto de Relações Internacionais da Universidade de São Paulo (USP), concorda com esta análise. Em suas palavras, "o alinhamento não era com os Estados Unidos, era com Trump e com um projeto político que ele representa, que é essa ascensão da extrema-direita, e, portanto, a política externa ficou claramente sujeita aos interesses políticos do que ficou conhecido como 'bolsonarismo'".

"É um dos principais erros e principais problemas da política externa do Bolsonaro, essa ideologização, uma ideologia agressiva, conspiratória, entre outras coisas. Desrespeitosa de vários direitos humanos, que eram uma tradição da Constituição brasileira, da política externa brasileira, e um alinhamento cego a um grupo político e não a um país. Aí, sim, se difere de tudo já visto até então na história brasileira. Já vimos vários governos aliados dos Estados Unidos, mas nunca tinha visto aliado a uma figura política e, portanto, o Brasil virou um pária Internacional, um país isolado. Quando o Bolsonaro viajou ao G20, ficou claro o desconforto dos principais líderes em encontrá-lo", completa.

Na primeira reunião da cúpula do G20 - grupo que reúne as 20 maiores economias do mundo - em outubro do ano passado, o chefe do Executivo federal destacou o avanço da vacinação brasileira contra a covid-19, além de ressaltar o trabalho do governo em uma agenda para minimizar os efeitos da pandemia no país e assegurar a retomada do crescimento econômico. O evento ocorreu já no período de Carlos França como chanceler. Ernesto Araújo, o primeiro titular do Ministério das Relações Exteriores (MRE) indicado por Bolsonaro, colocou o cargo à disposição do presidente após sofrer pressões de senadores para que saísse do comando do Itamaraty.

A permanência de Ernesto no posto de ministro das Relações Exteriores se tornou insustentável após uma briga iniciada com parlamentares. Em 28 de março de 2021, o então chanceler alfinetou a presidente da Comissão de Relações Exteriores do Senado, Kátia Abreu (PP-TO), com quem havia almoçado no início do mês para tratar sobre temas discutidos no colegiado. Kátia rebateu o ministro e disse que o Brasil não podia "mais continuar tendo, perante o mundo, a face de um marginal". Segundo o professor Pedro Ribeiro, enquanto o embaixador ficou à frente do Itamaraty, a política externa brasileira visava a um alinhamento às nações com governos de extrema-direita, "esse movimento que tem na eleição do Trump o ponto máximo". "Portanto, uma pauta mais isolacionista, por mais contraditório que seja. Uma pauta cristã, uma agenda pró-Israel", completa. Assim, em sua visão, o legado de Bolsonaro para as relações internacionais do Brasil incluem isolamento do país, e perda de relevância e de status internacional deste, um cenário de "terra arrasada".

Uma eventual nova gestão do Palácio do Planalto, a partir de 2023, que queira reverter esse cenário, diz o professor, precisará "refazer por completo a confiança do governo chinês no Brasil. "Com os parceiros da América do Sul, idem. Você precisa reconquistar, principalmente na Argentina e no Chile. O Chile está entre as cinco maiores fontes de investimento externo direto que o Brasil recebe, e é um mercado comercial, apesar de um país pequeno, bastante relevante na agenda brasileira. É preciso reconquistar essa confiança no governo brasileiro, que sem dúvida, ficou extremamente debilitada. O desafio dos sucessores do Bolsonaro na presidência é reconquistar a imagem que o Brasil tinha do ponto de vista diplomático pré-Bolsonaro".

Para Svartman, "no caso de haver uma mudança de governo (em 2023), ou seja, um outro presidente, uma outra orientação política e ideológica chegar ao poder, o primeiro desafio é restaurar a credibilidade". "Ou seja, o Brasil mudou algumas posições muito tradicionais suas, no que diz respeito a soberania, no que diz respeito a direitos humanos, direitos reprodutivos, direitos de minorias. E sempre foi um país muito calcado no direito internacional, apurando as suas posições no direito internacional, e fez essa virada de 2019 para cá". O outro desafio -- apontado pelo professor -- de uma eventual gestão nova, para melhorar as relações do nação sul-americana com o mundo, é traçar uma estratégia sobre qual "papel o país pretende ocupar no sistema internacional". Para o especialista, isto atualmente não está claro: o país não tem uma estratégia clara sobre como se posicionar diante de transformações tecnológicas, demográficas, econômicas e militar pelas quais a balança de pode no sistema internacional vêm passando.

Por outro lado, relembra Svartman, o Brasil não desapareceu no sistema internacional: "ainda é membro dos Brics, ainda faz parte da ONU, recentemente assumiu novamente uma vaga no Conselho de Segurança das Nações Unidas, ainda é uma das 15 maiores economias do mundo, é a principal economia da América Latina, é um grande produtor de proteína animal e de proteína vegetal, é um grande exportador de minério". 

Pontos positivos

De acordo com Pedro Ribeiro, há dois acertos principais do governo Bolsonaro nas relações internacionais, mas ambos foram "absolutamente herdados" da gestão de Michel Temer. São eles a assinatura de um acordo de livre comércio entre o Mercosul e a União Europeia (UE), em 2019, e a Operação Acolhida, que foi criada em 2018 com o objetivo de garantir atendimento humanitários aos refugiados e migrantes venezuelanos no estado de Roraima. A operação, no período de Bolsonaro na Presidência, nas palavras do professor da USP, "teve bastante recurso, teve atenção". "Se você comparar o Brasil com outros grandes receptores, como Chile, Colômbia e Peru, esses países criaram restrições legais que dificultaram um pouco, aumentaram as exigências para a recepção da migração venezuelana, enquanto o Brasil, não. Então, nesse quesito, se posicionou como um país que adere às normas internacionais e faz uma prática bastante recomendada de valorização dessa população numa situação bastante difícil", discorre.

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